26/02/2011

Mosaico de Simplicidade

Meu Tipo de Garota  de Buddhadeva Bose


Elza Pires de Campos
publicado no Caderno Pensar do Correio Braziliense em 26/02

Dois lançamentos da Companhia das Letras celebram países asiáticos vizinhos, a Índia e o Paquistão, e seu mosaico de culturas tão antigas quanto pouco conhecidas entre nós. O indiano  Buddhadeva Bose   e o paquistanês Daniyal Mueenuddin  desvendam, em contos, a atmosfera de mistérios, cheiros, cores, sabores e diferentes matizes  de um literatura que já nasceu mergulhada em um quebra-cabeças de línguas e dialetos diferentes.  Na  riqueza cultural dos contos destes dois livros há em comum apenas um adjetivo: a simplicidade.
O indiano Buddhadeva Bose (1908-1974) foi um dos mais importantes poetas do século XX, natural da região de Bengali, norte da índia.  Ele produziu poemas, romances e contos, além de ser professor e criador do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Jadavpur, em Calcutá, e tradutor de autores ocidentais como Baudelaire e Rilke.
Em “Meu tipo de garota”, Bose transfere a narrativa para quatro senhores de meia idade. Um burocrata, um médico, um empreiteiro e um poeta e escritor estão sentados em silêncio na sala de espera da estação ferroviária de Tundla,  norte da Índia.
A noite é fria e a monotonia da espera é interrompida, de repente, com a entrada de um casal jovem e apaixonado. Agarrados um ao outro, o casal busca  um lugar seguro e tranquilo para ficarem a sós. Mas logo deixam  o local. A cena do jovem casal e a notícia do atraso do trem que os deixaria ali a noite inteira quebram de repente o silêncio e a distância entre os quatro passageiros. Eles decidem passar o tempo e esquecer o frio contando suas próprias histórias- de amor e saudade-enquanto aguardam .
A única regra estabelecida é a sinceridade no relato. O empreiteiro lembra Malati, filha inabalável de um professor. O burocrata fala de Pakhi e dos beijos numa noite de luar. O médico conta sobre como descobriu e encontrou a sua esposa, Bina,  e da paixão dela por seu amigo, Ramen. Finalmente é o poeta que conta a história mais singular e delicada dos quatro contos. Ele recorda a sua própria paixão e de outros dois garotos  por  Toru, uma belíssima jovem que um dia chega na aldeia em que moravam. A emoção na narrativa do poeta convence a todos que aquela sim, seria dos quatro relatos a verdadeira história de amor.                                                                                                                                                                          Os episódios ocorrem entre meados de 1920 e a Segunda Guerra Mundial (o livro foi publicado pela primeira vez em 1951) e retrata a sociedade bengali daqueles tempos.
Se o Ocidente conhece a literatura indiana por intermédio do premiado Salman Rushdie, que deixou o seu país  aos 18 anos e foi morar na Inglaterra, os editores redescobrem agora esta geração de poetas e escritores da qual Bose é um dos principais representantes. Ao contrário de Rushdie,  que com outros faz parte dos escritores indianos da “diáspora”, Bose e sua geração permaneceram na Índia, retratando o país de dentro e, mesmo em contato com os escritores ingleses, tentaram preservar as tradições buscando seus próprios rumos literários.
Bose sempre viveu em Calcutá e transformou sua casa em local de encontros de alunos, escritores, intelectuais e editores que passavam noites em animadas conversas literárias embaladas por infinitas xícaras de chás aromáticos.
Vizinho da Índia, um Paquistão quase feudal se revela “Em outros quartos, outras surpresas” na luta pela sobrevivência a qualquer custo  que pontua os oito contos do paquistanês Daniyal Mueenuddin. O desemprego, as diferenças sociais, a pobreza e a instabilidade para os jovens e  velhos costuram todas as histórias, interligadas por um personagem comum a elas: o rico proprietário de terras K. K. Harouni. Do eletricista Nawabdin, que vive nas terras do patrão, mas o engana sempre buscando pequenos serviços por fora , à jovem Husna que seduz o velho Harouni só para ter um local confortável para comer e dormir, ou Saleema, a doméstica  que dorme com o cozinheiro de Harouni na tentativa de não perder o trabalho, revela-se a tensão permanente dos personagens na  luta pela ascensão social.
Mueenuddin nasceu em 1963 e foi criado em Lahore, Paquistão, mas estudou nos Estados Unidos. Com este livro de contos ele foi finalista do Prêmio Pulitzer no ano passado e indicado para vários outros destaques na literatura de língua inglesa. Antes disso teve contos publicados na revista New Yorker.
Neste ambiente mergulhado na magia do Oriente, os contos de Mueenuddin e  Bose trazem mulheres vestidas em coloridos sáris, tatuadas em henna, cabelos negros e longos que elas penteiam e secam ao sol, amassando diariamente os chapattis, aquele pão achatado e feito numa chapa de cerâmica e ferro.  Homens que interrompem o trabalho e rezam várias vezes ao dia . A espiritualidade, as cores e os cheiros dos temperos e de jasmins sempre foram  um fascínio no Ocidente.  O Paquistão, com a maior população mulçumana do planeta, é ainda mais misterioso entre nós.
Apesar de hoje inimigos políticos, a literatura nesses dois países que um dia foram um só território  tem um singular fator de  unidade: o sânscrito. A literatura sânscrita percorre várias etapas ao longo do tempo, e só a epopéia Mahabharata, de data incerta, provavelmente do início da Era Cristã, é um composto de cem mil versos de trinta e duas sílabas.
Alicerce dos ensinamentos sagrados indianos e a língua dos brâmanes, o sânscrito  foi também a origem de inúmeras línguas  no norte da índia -- assim como o latim para as línguas romanas --  e durante séculos considerada a forma perfeita para a comunicação com os deuses. Se a diversidade linguística favorece o romance e o conto, é  sem dúvida interessante conhecer a literatura desta parte do Oriente.

Trechos:
“As  palavras finais do escritor flutuaram por algum tempo no ar abafado da sala, com ele sentado em silêncio diante daquela última pergunta não respondida. Não havia mais nele nenhum sinal de inquietação;.... e mesmo depois de calar, parecia que as palavras não tinham terminado; ele continuava escutando sua própria voz, sem cessar; por fim, como acontece quando se joga  pedra em uma poça d’água, as reverberações das palavras morreram também”  “Meu tipo de Garota”  Buddhadeva Bose
“Aos vinte e quatro anos, aquela vida dura ainda não havia deixado marcas nela e, quando sorria, suas covinhas a faziam parecer ainda mais nova, uma menina mesmo; ela  também conservava um pouco da gravidade de menina. Era verdade que o cozinheiro Hassan tinha conseguido tudo dela; como sempre, ela havia se entregado rápido demais”...  “Em outros quartos, outras supresas” Daniyal Mueenuddin


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