30/12/2010

A literatura pode transformar o seu mundo?

 Coluna da Eliane Brum no site da Revista Época 27/12/2010
"Qual a importância da literatura na vida cotidiana de cada um"?

Não sou muito dada a inícios convencionais de ano. Recomeço tantas vezes num ano só e sempre em datas imprevistas que não vejo muito sentido em festejar um dia específico do calendário. E o fato de não encontrar sentido na comemoração da data não me torna nem melhor nem pior do que ninguém. Mas como de algum modo a maioria das pessoas para – ou é parada – nessa época para pensar na vida e promover um recomeço simbólico, quero dar uma sugestão. Além das metas de sempre – parar de fumar, perder uns quilos, se matricular na academia de ginástica etc etc –, minha proposta é que cada um de nós se arrisque a descobrir a literatura. Tenha a coragem de chutar para o ano que passou a surrada desculpa do “não tenho tempo para ler” e se carregar para o futuro com espaço para o novo que vem das letras. Por quê? Por nada de útil. Por tudo o que importa.
No Paiol Literário, um evento que leva a Curitiba escritores para uma entrevista pública, há uma pergunta clássica e recorrente: “A literatura é capaz de transformar o mundo?” Ela vem entrelaçada a uma outra: “Qual é a importância da literatura na vida cotidiana de cada um?”. Quem criou essas duas perguntas no início do projeto, em 2006, foi José Castello – jornalista, crítico literário, escritor e uma das pessoas mais gentis que andam por esse mundo. Depois, Luís Henrique Pellanda, também jornalista e escritor, seguiu com elas ao substituí-lo no posto de entrevistador.
Perguntei a Pellanda se ele poderia emprestar algumas respostas colecionadas ao longo dos anos para publicar aqui nesta coluna. E ele, que também é um homem muito gentil, me enviou sete. Eu escolhi as três que mais me cutucaram com um dedo delicado, mas incisivo, para compartilhar com vocês nessa conversa de virada de ano. Acho que são respostas que dão coceira na alma. E coceiras da alma, na minha opinião, só se resolvem com arte. Com literatura.
Sérgio Sant’Anna, autor, entre outros, de Um Crime Delicado e O Voo da Madrugada, ambos publicados pela Companhia das Letras, respondeu que a literatura dá ao leitor uma possibilidade imperdível: “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário. E não é só o escritor que tem isso. O leitor também tem. Ele é um cara que vive dupla ou triplamente”.
E, em seguida: “A literatura é um ato de prazer, que não deve ter segundas intenções. Ela dá aos leitores um espaço muito maior. Se você está lendo um livro, se vê obrigado a criar junto com ele — algo que, na televisão, não existe. Na TV, você pega as coisas mais mastigadas, uma torrente de anúncios e de segundos interesses. É muito ruído.”
Silviano Santiago, autor, entre outros, de O Falso Mentiroso e Anônimos, ambos editados pela Rocco, diz que todo leitor é também escritor. Ele afirma: “É inegável que a literatura tem uma função, assim como todas as artes têm. O primeiro cuidado a ser tomado, se a gente fala da função da literatura, é não fazer uma divisão entre produtor e consumidor. Ou seja, não fazer distinção entre escritor e leitor. Acho que a literatura tem a mesma função para ambos. Não existe um escritor que não seja leitor. Todo leitor é, por sua vez, um produtor de texto. Nós, escritores, escrevemos em uma folha de papel ou na máquina ou no computador, enquanto o leitor escreve naquilo a que os jesuítas chamavam de ‘folha de papel em branco da mente’”.
Santiago diz também que, ao ler, o leitor se apropria daquele mundo e o torna seu. Não apenas seu por estar dentro dele, mas seu como ele mesmo. “O processo de leitura é um exercício de alteridade. É você entrar em um determinado mundo que não é o seu, no qual se entra muitas vezes por um processo de surpresa. Você não esperava aquilo de maneira alguma e, de repente, entra e se encanta com aquele mundo. Quanto mais se entra naquele mundo, mais se apropria dele, mais torna aquele mundo você mesmo. O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, de si próprio.”
A literatura nos dá muito. Mas não promete nada. É o que disse Luís Henrique Pellanda, autor de O Macaco Ornamental (Bertrand Brasil), ao trocar de lado e responder a uma pequena entrevista para esta coluna. “A literatura não promete felicidade alguma — pelo menos não do tipo clássico, ou seja, o tipo imaginário — e não nos oferece garantias de finais felizes, nada disso. Ela nos amplia a vista de casa, nos mostra o outro — igual e diferente de nós — e exige que nos comparemos a ele, que nos analisemos e, de alguma forma, promovamos reformas internas”.
Ao responder à sua própria pergunta sobre o poder de transformação da literatura numa crônica recente, Pellanda disse lindamente: “Literatura, para mim, pode ser simplesmente a maneira como reordenamos, há milênios, as mesmas histórias, fabulação sobre fabulação, mentira sobre mentira, verdade sobre verdade, e o uso pessoal — íntimo, social, político, intelectual, espiritual — que fazemos delas. Se a literatura é capaz de mudar o mundo? Eu diria que o mundo em que vivemos, bom ou ruim, já é o mundo da literatura. Só ela dá conta das nossas histórias de amor”.
Beatriz Bracher, autora, entre outros, de Antonio e Azul E Dura, ambos publicados pela Editora 34, respondeu à mesma pergunta em duas etapas. Na primeira, no Paiol Literário, ela disse: “A arte pode transformar o mundo ou não, como muitas outras coisas, como as ideias e a política. Mas não acho que ela tenha uma proeminência nesse aspecto. Ela pode transformar o mundo simplesmente por fazer parte dele. Ela está aí. Agora, essa crença de que a arte transformaria radicalmente o mundo, que criaria um novo homem, que nos traria uma espécie de iluminação — não acredito nisso”.
“Por que é importante ler?” – ela pergunta a si mesma. “Não sei. Acho que ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. Para você ser os outros e habitar outros lugares durante o tempo em que estiver lendo. E, quando você voltar ao aqui e ao agora, a você mesmo, voltará com os olhos muito mais aguçados. Eu saio de um livro sempre muito comovida, ou tocada, ou agressiva. Sempre me transformo de alguma maneira. Fala-se muito que temos uma grande afeição ao caos, que o mundo é informe e que a arte daria forma às coisas. Na verdade, temos pânico do caos. Nós não conseguiríamos viver sem alguma ordem na nossa história. E o que a literatura faz é desordenar um pouco isso, mostrar outras maneiras de organizar nossa vida”.
Beatriz foi para casa e continuou provocada pela pergunta. Enviou então um email a Pellanda. E um bem bonito: “Por que é importante ler? No nono e último círculo do Inferno, de A Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do ‘primeiro pranto, qual viseira de cristal’, congelam-se depois de inundar ‘do olho a cava inteira’. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros”.
Como se pode abrir mão de algo assim? Viver sem essa possibilidade? É Pellanda quem nos sacode: “Não ler, em muitos casos, é sintoma de preguiça e falta de condicionamento. Um mal prosaico. Muita gente não lê por levar uma espécie de vida mental sedentária. Aceitam que sua fome tão humana de fabulação seja alimentada pela TV ou pelos blockbusters e, com isso, apenas engordam sua passividade. Digo, de cara, que quem não lê perde a chance de se mostrar ativo em relação ao seu mundo e ao seu tempo. Perde vitalidade. Perde uma ótima oportunidade de se treinar para uma vida mais rica e, quem sabe, feliz”.
No Brasil, um país onde se lê tão pouco e onde metade dos adolescentes tem dificuldades para interpretar um texto, acredito que é preciso profanar a literatura. Aprendi isso com o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, o maior sarau de poesias do país. Os livros precisam deixar de ser sagrados e virar matérias das ruas, tocados por muitas mãos, marcados por lágrimas, suor e gordura. Antes de iniciar a leitura, é preciso apalpar, cheirar, bolinar o objeto que contém a história – ainda que isso seja feito virtualmente. É importante perder o medo dos livros, um excessivo respeito. Incinerar para todo o sempre a ideia de que a literatura é território restrito dos que supostamente sabem mais e torná-la matéria permanente das nossas vidas. Espécie de feijão e arroz da alma.
Não importa o que você lê nesse primeiro movimento, importa que você comece a ler. Leia por prazer. Leia por temor. Leia por coragem e por inocência, fingindo desconhecer que não será o mesmo depois do ponto final. Ninguém precisa começar lendo Proust – nem mesmo precisa ler Proust alguma vez na vida, embora eu ache que vale a pena. Leia aquilo que lhe dá prazer – ainda que seja um prazer vindo do incômodo – e crie uma história só sua com os livros, movida pela sua própria busca. Vá à livraria ou à biblioteca como se fosse a uma festa de gente desconhecida – e até esquisita – e veja com quem tem afinidade, quem lhe sorri, mostra a língua ou um naco da coxa.
O melhor da literatura é que ela não nos dá nenhuma resposta. Nos dá algo muito melhor: nos dá novas perguntas. Perguntei a Pellanda de onde veio a indagação que motivou este texto. Ele respondeu: “De onde vem uma pergunta? De nossa compulsão por saber das coisas, uma compulsão imortal, que nunca será saciada, pois jamais saberemos de nada. E não é ela, essa incerteza sedutora, que nos leva a escrever e a ler? Já se tornou um clichê dizer que a boa literatura não nos responde coisa alguma, e que somente nos faz mais perguntas, apenas perguntas, e irrespondíveis. É um lugar-comum, ok, mas está correto. A última frase de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, é uma pergunta e a usei como epígrafe de meu primeiro livro de ficção. Depois de mais de oitocentas páginas, não se conclui nada, e o narrador de Mann se pergunta: ‘Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?’. Será? Não sabemos. Não há resposta possível, nunca houve. E a literatura é isso, fazer as perguntas difíceis, às vezes as constrangedoras. Como aquelas que as crianças nos fazem”.
Para mim não há vida sem literatura. E mais tarde, num outro dia, darei minha própria resposta à pergunta maior do Paiol Literário. Por enquanto, desejo a você que, em 2011, se arrisque mais. Leia. Se já tem intimidade com os livros, aprofunde-a. Tente um território novo. Fale sobre livros em vez de falar mal do chefe, do vizinho, do colega. Faça um favor a si mesmo: prometa que, no novo ano, jamais dirá que não tem tempo para ler.
Talvez a gente nunca saiba se a literatura é capaz de transformar o vasto mundo de fora. Mas podemos nos arriscar a descobrir – e esta é uma tarefa pessoal e intransferível – se a literatura é capaz de transformar o nosso mundo. O meu, o seu. Acredito profundamente que sim. Se tivermos a coragem de tentar, o mundo de dentro vai se alargar. E andaremos por aí carregando nosso próprio horizonte.
Termino com mais algumas ótimas frases de Luís Henrique Pellanda. E as pego emprestadas como meus votos de Ano-Novo:
– Quer dizer, você sabe ler e não lê? Onde é que você está com a cabeça? Achou seu espírito no lixo? Leia. Aproveite.

28/12/2010

Bibliotecas da Colômbia, exemplos para o Brasil





Enviado por Mara Bergamaschi*, de Bogotá,
Publicado em O GLOBO - 25.12.2010 | 09h15m


El Tunal é longe: há mais de uma hora passam favelas ao longo das duas pistas, mão e contramão, ao sul de Bogotá. De um lado, casas de tijolos claros, sem reboco, já não cabem na planície: aproximam-se da cordilheira e misturam-se com ela, bordando o sopé da montanha com tons mais leves de marrom. Parecem esculpidas na terra, arqueológicas. Do outro lado, sem a muralha, construções espraiam-se a perder de vista. A tarde ainda está pelo meio, mas há pouca luz e faz frio. O céu está nublado, a garoa vai e vem. Penso que é pior viver ali, sob aquele insano equatorial-de-altitude, do que nas favelas do Rio: pelo menos no balneário tropical há sol, céu azul e, em alguns casos, até a vista esplêndida da baía e das praias. Em Bogotá, alternam-se, em fração de horas, calor-frio-secura-vento-chuva, com vantagem inequívoca, a 2.600 metros, para a friagem. Sob os Andes, o clima é rude para humanos, mas ótimo para plantas, que vicejam e florescem, como se cultivadas em estufas. De cima, do avião, os vales rurais da Colômbia não são verdes; são verdíssimos, de todos os matizes. Mas ali, onde se estende parte da imensa periferia urbana, ocupada por três dos oito milhões de habitantes da capital, quase não há mais vegetação. Quase: quando surge um espaçoso gramado com árvores esparsas, chegamos. Eis enfim a Biblioteca Pública Parque El Tunal, com seu grande rabo de baleia — escultura no espelho d’água da fachada que é também a logomarca da instituição.


Autores brasileiros são populares no país


Mal entramos e o diretor, de gravata, já está a postos para mostrar o local aos mais de 50 brasileiros, professores da rede pública, em sua maioria. Professoras, na verdade. Há somente meia dúzia de rapazes. O grupo está ali por ter se destacado com experiências inovadoras de leitura em suas escolas. Alguns projetos são mais do que criativos: Malvão, o único professor de 48 crianças e adolescentes de uma isolada comunidade caiçara de Paraty, instalou uma biblioteca num rancho de pesca, onde se guardam barcos e canoas. Todos os dias, ele pega um ônibus, uma van e um bote para dar aulas. Quando o mar encrespa, caminha por duas horas e meia pelas trilhas. Seus colegas enfrentam outras adversidades. Muitos trabalham em periferias semelhantes a que acabamos de atravessar. Outros têm mais sorte: dão aulas em escolas bem equipadas e localizadas. Mesmo esses nunca viram bibliotecas públicas como as da Colômbia. A espetacular Virgílio Barco, visitada no dia anterior, fez todos entenderem porque Bogotá, sede de um Estado convulsionado há décadas por combates entre guerrilheiros, paramilitares, narcotraficantes e soldados, foi declarada pela Unesco Capital Mundial dos Livros em 2007. Mesmo em guerra, a pátria de Gabriel García Márquez lê — atividade que talvez mais convide ao silêncio e à paz. E conhece bem a literatura infantojuvenil brasileira. Autores como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Ângela Lago, Nilma Lacerda, Bartolomeu Campos de Queirós, Marina Colasanti, traduzidos desde os anos 1980, são considerados fundamentais para a renovação do gênero na Colômbia. Roteiro melhor, ainda que exija um pouco de coragem, não poderia haver para os professores premiados pelo Concurso Escola de Leitores, organizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e Instituto C&A.

Na Bogotá vez por outra aterrorizada por carros-bombas, as bibliotecas estão vivas. Inclusive as localizadas nas áreas mais pobres e violentas. O diretor Róbinson Areliano que o diga. Versão mais modesta da nave-mãe Virgilio Barco, El Tunal, a terceira maior, por onde passam em média 4 mil pessoas por dia, tem excesso de demanda: recebe três vezes mais crianças do que comporta. Bayron Vargas tem dez anos e é frequentador assíduo. Com nome de poeta, segue seu destino, entre livros.

— Gosto das histórias, dos trabalhos, de tudo, por isso venho todo o dia — diz.

Para acomodar tanta gente, os 63 funcionários precisam reinventar o espaço.

— Nos fins de semana, montamos tendas e guarda-sóis no parque para pais e filhos — diz o diretor, também bibliotecário.

Róbinson, que deve estar na faixa dos 40, é igualzinho à maioria dos seus conterrâneos, mestiços de brancos e índios. Mas há algo diferente, que o faz se parecer mais com os brasileiros: ele é sorridente. De maneira geral, os bogotanos se mostram gentis, mas fechados. As mulheres, mesmo jovens, costumam ter um olhar assustado. É que quase todo mundo tem uma história brutal para contar, que vitimou gente distante ou próxima. Os períodos de trégua, como o vivido atualmente, parecem insuficientes para revogar o semblante sério. Que se repete, identifico agora, em todas as figuras redondas, supostamente divertidas, de Botero: no Museu, nenhum de seus retratos sorri, nem incognitamente (exceção aberta só mesmo na sua versão da Monalisa). O que o artista capturou de seu povo, que aliás nada tem de obeso, foi, deduzo, esse deficit de alegria. Anti-Botero total, magro e feliz, Róbinson defende que os livros ajudem a conduzir os niños ao mundo da imaginação e da fantasia.

— Não queremos oferecer o que já vivem nem recordar a dureza de seu ambiente — diz, nas salas decoradas com dragões feitos pelos estudantes.

“Então as crianças não vão falar de suas vivências?”, questiona na mesma hora a bibliotecária Silvia Castrillón, organizadora do périplo dos brasileiros. Envolvida há anos nos movimentos sociais pró-leitura, diz que El Tunal é o seu projeto favorito.

— Aqui, a comunidade está presente — justifica.

Mesmo assim não deixará passar em branco suas divergências. Ao contrário de Róbinson, Silvia não exalta o lúdico: considera a relação com os livros um prazer que se conquista com algum esforço, em todas as idades. Suas convicções, que agradaram os professores brasileiros, são firmes: não existe leitura sem debate e sem escrita. E não haverá aluno-leitor sem que haja antes professor-leitor. Engajada, a senhora grisalha, que já teve cargos estratégicos em governos e no mercado editorial, continua disposta a consertar tudo. Deplora a “moda das bibliotecas escolares” que não colocam a literatura, a palavra, no centro do trabalho. E critica a escola colombiana por não fazer frente aos problemas do país:

— Não falam da violência nem da guerra.

O feijão ou o sonho? Quem venceria a batalha em El Tunal, nos supostos domínios do reino encantado, seria a dura realidade. E de forma surpreendente. Alguém já imaginou se aproximar de painéis coloridos, com aplicações costuradas a mão, e ver cenas de assassinato e sequestro, cadáveres e sangue, crianças e mães em fuga, além de um povoado destruído por homens armados? A narrativa completa de um desplazamiento (êxodo forçado), imposto por paramilitares à comunidade de Mampuján, em 2000, foi registrada por 15 mulheres sobreviventes. Estima-se que 10% da população do país — mais de quatro milhões de pessoas — tenha sido desalojada pelos conflitos. A primeira reação àquela estética do paradoxo é o choque: como pode o horror ser mostrado com tanta delicadeza?

— Há algo de punk no ar — resume Patrícia Lacerda, especialista em educação, coordenadora do Concurso de Leitores.
Sua impressão seria reforçada pela leitura de títulos infantojuvenis de sucesso local. Em um deles, Chapeuzinho Vermelho simplesmente envenena o Lobo Mau com um caramelo. E diz no final: “como és inocente!”


Bibliotecas colombianas impressionaram Vargas Llosa

Hoje no comando da Asolectura, ONG que responde por 40 Clubes de Leitores, Silvia Castrillón conhece e acompanha o mercado contemporâneo. Mas sem perder jamais suas referências: é fã da pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que cita sempre. E de vários escritores brasileiros: muitos dos que são populares entre nossos hermanos foram editados e algumas vezes traduzidos por ela. Também levou e conseguiu implantar em seu país propostas — como o fundo das editoras em favor da leitura —, inconclusas há anos no Brasil. Nossa anfitriã em Bogotá tem, portanto, fortes e antigos laços conosco. A secretária-geral da FNLIJ, Beth Serra, é testemunha disso:

— É incrível, mas Silvia pegou ideias, levou e fez antes de nós.

Os esforços educacionais do país para elevar o status da literatura e popularizar os livros ganham cada vez mais visibilidade. Mesmo distante, a biblioteca El Tunal já consta dos roteiros turísticos internacionais e vem atraindo gente famosa. Róbinson, que está lá desde o começo, há nove anos, não nos conta, mas o escritor peruano Mario Vargas Llosa, que conquistou o Nobel de Literatura em 2010, esteve lá. Ficou tão impressionado que seu verbete sobre a Colômbia, no “Dicionário Amoroso da América Latina”, de 2005, é dedicado unicamente às bibliotecas de Bogotá. “São autênticos eixos da vida comunitária desses bairros humildes, onde vão as famílias em suas horas de lazer, porque nesses locais e ao seu redor, velhos, crianças e jovens se divertem, se informam, aprendem, sonham, melhoram e se sentem participantes de uma iniciativa comum”.

No gramado da biblioteca, meninos uniformizados empinam seus “cometas” coloridos contra o céu cinza. Aproveitam os bons ventos. Quando saímos, os pingos de chuva voltam a cair. As crianças correm. Se precisarem, o refúgio está bem ali. Em tempos de guerra e paz. 

* MARA BERGAMASCHI é jornalista e escritora

20/11/2010

Flor de Cacto

Flor de Cactos - foto de Mara Bergamaschi




Flor de cacto, flor que se arrancou
À secura do chão.
Era aí o deserto, a pedra dura,
A sede e a solidão.
Sobre a palma de espinhos, triunfante,
Flor, ou coração?

José Saramago

14/11/2010

Simone e Virgínia: preciosas releituras

Simone em sua mesa de trabalho
Publicado no jornal Correio Braziliense em 23/10/2010
Virgínia em diferentes momentos
                  Elza Pires de Campos

“A Casa de Carlyle”, de Virginia Woolf, e “A Mulher Desiludida”, de Simone de Beauvoir, inauguram a coleção Fronteira,* da editora Nova fronteira, a preços acessíveis.
A meta é abrir espaço para clássicos e resgatar obras há tempos esgotadas.


Em “A Casa de Carlyle”, os seis contos foram escritos em 1909, recuperados depois de anos deixados em uma gaveta de uma jovem que datilografava os manuscritos da escritora. Vieram a público recentemente, em 2003. Preciosidade de uma Virgínia Woolf então com vinte e sete anos. Não por acaso, em um dos contos ela descreve, num texto curto e surpreendente, a cena banal de uma vara de família em que um casal se separa. Na Inglaterra vitoriana da época, em que as jovens da burguesia eram mães antes dos vinte, Virgínia ainda não decidira se casar.
Transgredia ganhando a vida dando aulas à noite para adultos, num período em que as mulheres, além de não trabalhar, não podiam votar ou frequentar universidades. Virgínia estudou em casa, na biblioteca do pai. Naquele ano recebera uma proposta de casamento. No último conto deste livro, “Vara de Família”, um homem e uma mulher, que se odeiam e se magoam profundamente, buscam a separação diante do juiz. No curto esboço de duas páginas, e nos demais seis contos, está resumido tudo o que interessa e vai interessar Virgínia pelas próximas décadas da sua vida de escritora. O eu e o nós, pensamentos e sensações, a sonoridade das frases, os olhares, as minúcias, tudo tão simples mas que diz tanto, como, por exemplo, o frio que corta ou a lama que entra pelos sapatos. Nestes seis fragmentos esquecidos e tão antigos é possível vislumbrar a Virgínia exploradora que foi da alma humana.
Já Simone de Beauvoir, em “A Mulher Desiludida”, solta em cena a loucura e o medo das suas personagens femininas. Em três contos distintos - um diário, um monólogo e um manuscrito -, o espaço da narrativa pertence a três mulheres. O que as entrelaça é que são todas desiludidas. A faixa etária está entre quarenta e cinqüenta anos, quando já estão no desalento de uma vida em que a juventude e a beleza lhes escapam, o amor não aconteceu, e provavelmente jamais aconteça, os filhos estão criados, o trabalho se repete e a profissão, onde a criatividade acabou, não dá o menor prazer .
Uma delas, militante política e professora, fez com que o filho seguisse seus passos profissionais. Projetava no garoto tudo que não fizera, até que ele cresce e passa a ter luz própria. Daí em diante ela, a mãe, delira e não consegue deixar que ele se vá. Insiste em continuar orientando, mandando, determinando o que o jovem, casado, deve fazer da sua vida. Sem perceber, torna-se infeliz e deixa mais infeliz ainda aquele a quem tanto ama. A outra personagem, do segundo conto, cultiva um monólogo para se esquecer das brigas diárias com a filha adolescente.
O terceiro conto, que dá nome ao livro, revela a mulher que, com medo de acabar com o longo casamento que já acabou, finge não se incomodar que o marido tenha uma amante. Convive com a situação e se violenta. Para desabafar, escreve um diário.
“Procurei transmitir aos meus leitores algumas experiências das quais participei de forma direta ou indireta”, explicou Simone na época do lançamento do livro, no início dos ano 70, ao lembrar que havia recebido confidências de várias mulheres, algumas abandonadas pelos maridos ou companheiros. Observara pontos em comum entre elas e resolveu reunir parte daquelas histórias em um livro.
Nos pormenores destas três histórias, salpicadas de fatos reais, Simone resgata um aforismo que a deixou famosa na década de sessenta, bandeira do hoje  já embolorado movimento feminista: “Não nascemos mulheres, nós nos tornamos". Boa frase para se lembrar no momento em que a campanha eleitoral fervilha em torno do aborto. Não custa nada acrescentar que as duas --Simone e Virgínia -- lutaram pelo direito de escolher ter ou não ter filhos, um dos temas que impulsionou o feminismo em passeatas, isto no mínimo há quatro décadas.
* já se encontram também disponíveis na mesma coleção Corpo de Baile de João Guimarães Rosa; A escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade;A cinza das Horas, de Manuel Bandeira; Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues e Morte em Veneza de Thomaz Mann.

18/10/2010

O Acidente

Elza Pires de Campos - Publicado no Correio Braziliense 
Kadaré, autor de Abril despedaçado
A Albânia ou o abismo? Uma história de amor ou uma investigação policial? Ismail Kadaré edifica uma teia de inusitadas situações em seu último romance, O acidente. Habituado a revestir suas histórias de cenas políticas, Kadaré mantém o mesmo viés de denúncia de outras obras suas, mas parte desta vez de um fato banal. Pelo retrovisor de um táxi a imagem de um casal que tenta se beijar acaba provocando um acidente fatal. É o passado e o presente. A realidade que escapa sob um frio intenso, neblina e chuva. O carro mergulha no abismo, ambos morrem e o motorista, que teve a atenção desviada ao observar a cena do abraço, sobrevive. Fica o trauma. Aquela tentativa de beijo não lhe sai mais da cabeça.

O acontecimento tão insignificante não valeria nem mesmo uma investigação. Menos ainda um romance. Mas Kadaré, logo nas primeiras páginas do livro, instala a confusão na cabeça do seu próprio leitor ao deixar escapar uma informação importante: o homem que tentava beijar a moça, Bessfort Y, era diplomata, analista, colaborador do Conselho da Europa sobre questões dos Bálcãs ocidentais, e havia trabalhado contra a Iugoslávia. Ele fora julgado no Tribunal de Haia.

As 40 semanas anteriores ao acidentes são esmiuçadas na investigação. Engenhoso, Kadaré faz uma narrativa da narrativa. Este é o material que dá suporte ao romance. O que não significa monotonia na leitura. Aliás, muito pelo contrário. O texto é rico em detalhes, as confidências noturnas de dois amantes, testemunhas contraditórias, enfim, miudezas que longe de esclarecer, turvam e embaralham o curioso leitor até o fim do livro.

A jovem Rovena era realmente uma estudante apaixonada por Bessfort Y, ou seria uma garota de programa que estivera com ele algumas vezes? Por que eles tentavam se abraçar ali, naquele táxi, rumo ao aeroporto, numa estrada dos Bálcãs? A pianista, amiga de Rovena e sua amante seria uma testemunha-chave? O motorista realmente nada sabia? Ou era um cúmplice? O que haveria por trás daquele abraço e tentativa de um beijo? Se o amor é tirano ele também pode levar à morte?

Há ainda fábulas e referências às cantigas épicas balcânicas cujos conteúdos Kadaré transforma em metáforas na frenética tentativa de entender a realidade. Afinal, a busca de analogias com o passado da Albânia, as tragédias gregas e a pesquisa incessante acompanham o trabalho de Kadaré. Em Abril despedaçado, que inspirou o filme homônimo de Walter Salles, Kadaré traz de volta o Kanum, código que regulamenta os crimes de sangue na Albânia e mesmo que não tenha equivalente no Brasil, Salles adaptou-o a uma briga de famílias no sertão nordestino.

As perguntas, em circunlóquio, mantêm o leitor atento. Afinal de contas, mais do que uma reflexão sobre a tirania de um governo, a pressão e a opressão, estão em jogo também a tirania do amor, o ciúme, as relações paralelas e, finalmente, a cumplicidade de dois amantes. Rovena sabia das ações de Bessfort Y? Até que ponto, nas conversas da madrugada, ele não revelara as pressões políticas às quais estava submetido, os golpes e contra-golpes do governo albanês?

Kadaré vive hoje entre Paris e Tirana, na Albânia, e reconhece que a literatura foi sua principal aliada nos piores momentos da ditadura política de seu país. Isso antes de se tornar famoso, ter seus livros publicados em diversas línguas e, pelo mesmo motivo, conseguir deixar a Albânia. Ao lembrar que ser um escritor famoso dentro de um país stalinista significa ser duplamente culpado, Kadaré afirmou certa vez: “Meus amigos franceses daquela época, sempre através da imprensa, faziam perguntas sobre mim e o meu paradeiro na Embaixada da Albânia. Assim dirigiam recados ao governo e isso me ajudou bastante contra algum eventual acidente”. 


Fogo amigo mostra habilidade de israelense em fazer quebra-cabeça narrativo


Publicação: 16/10/2010 
Elza Pires
Especial para o Correio



Fogo amigo De A. B. Yehoshua. Companhia das Letras, 400 páginas. R$ 54,50














Considerado, ao lado de Amon Oz e David Grossman, um dos principais representantes da literatura israelense na atualidade, Yehoshua nasceu em Jerusalém em 1936. E, assim como seus dois compatriotas escritores de um país em guerra, busca nos temas do cotidiano a carga emocional suficiente para enviar aos leitores o seu recado político: "Períodos de sofrimento criam grandes momentos literários",  explica ele, professor de literatura na Universidade de Haifa desde 1972.

Mais do que um romance, este livro, segundo o próprio Yehoshua, foi escrito na forma de um dueto. Duas vivências simultâneas, um homem e uma mulher, num período de poucos dias e mudanças sensíveis em suas vidas. O autor sutilmente monta uma espécie de quebra-cabeças ao longo do livro. Além de repassar todas as conexões destas peças ao leitor, também deixa a narrativa por conta do casal de judeus que, entre cansados e emocionados, se despede no aeroporto de Tel-Aviv. Ele fica na cidade. Ela vai para a África.

Ao longo da história há uma espécie de diálogo inconsciente entre os dois personagens principais. Ambos de meia-idade — Daniela e Yaári — com filhos criados e netos, eles se separam durante o feriado judaico de Hanucá, uma celebração de 8 noites, tradição de mais de dois mil anos. Enquanto ele trabalha em Tel-Aviv, cuida do velho pai doente, e se ocupa da família, ela segue para a Tanzânia, no continente africano. Vai para uma outra realidade, um projeto da Unesco, um acampamento de antropólogos e arqueólogos que buscam a ligação entre o homem e o macaco.

Daniela decide encontrar o cunhado — Jeremias, o pai do soldado morto pelo fogo amigo — que ela não via desde a morte da irmã, há dois anos, e se mudara para a Tanzânia. Daniela, que viajara para relembrar a irmã, acaba se envolvendo mais do que queria com a dor e as angústias do cunhado. Sua transformação interior em poucos dias é tão surpreendente que ela, sob o risco de ser presa, volta a Israel trazendo em sua nécessaire alguns ossinhos encontrados nas escavações da equipe de pesquisadores na Tanzânia e que precisam ser identificados por especialistas israelenses.

Humor

Aqui um exemplo curioso do viés de humor que acompanha a narrativa de Yehoshua. O instituto Abur Kabir, principal centro de medicina legal do País e um dos mais importantes do mundo, situado em Tel Aviv, é o único nome árabe que restou na região após a criação do Estado de Israel. A palavra Abur Kabir — que segundo Yehoshua foi provavelmente uma aldeia árabe destruída durante a guerra — tornou-se a referência na identificação dos restos das vítimas dos atentados terroristas. É para este instituto que, clandestinamente, Daniela encaminha os ossinhos dos macacos para serem identificados. Aliás, o fogo e toda a sua simbologia estão presentes em vários momentos do livro. Na Tanzânia, Daniela se surpreende com o azulado da chama que brilha diariamente, mesmo sob o calor intenso, porque as famílias mantêm aceso o chamado fogo perpétuo. O mesmo fogo está também entre os antropólogos, como elemento que diferencia o homem do primata. Naquele instante, em Tel-Aviv, transcorrem as bênçãos e velas acesas todos os dias do feriado de Hanucá.

Ao situar sua narrativa na delicada fronteira da relação entre homem e mulher, Yehoshua convida o leitor a refletir também sobre os limites de uma guerra, os custos pessoais imensos da luta do povo judeu — de origem nômade, que sempre sobreviveu sem fronteiras e se espalhou pelo mundo — e agora luta para continuar na busca de um limite territorial.
Yehoshua, um dos principais nomes da literatura israelense: uso de simbologia e convite à reflexão

15/07/2010

Theo e o osso

Theo, no dia do aniversário de um ano. Devorando um osso. foto Thomaz Pires

Dois andares abaixo do meu (texto do Blog da Eliane Brum)

Reproduzo o texto publicado no Blog da Eliane Brum. Serve como reflexão sobre envelhecimento e solidão. Quando morei na França, na década de 1980, vi várias situações como esta, descrita abaixo de forma tão comovente....


ELIANE BRUM

Reprodução

ELIANE BRUM

ebrum@edglobo.com.br


Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.
Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.
Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.
Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava, assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas, em abissal solidão.
Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.

Não consegui dormir por algumas noites porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando imaginar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69 apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.
Numa fissura do tempo algo que não pode mais ser oculto se revela – revelando também o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a dela.
Depois precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.
Acredito que todos no prédio ficaram chocados, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela tentávamos viver. Mas também – e talvez principalmente por isso – porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.
O apartamento dela é igual ao nosso. Esta semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderia ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso horror se fosse um assassino, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um psicopata. Isto está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali por solidão. E isto está bem perto.
Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.
Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.

22/06/2010

Proposta de Felicidade

17/06/2010 -


Thomaz Pires do site Congresso em Foco

Defensor dos direitos sociais, o deputado Chico Alencar (PSol-RJ) abraçou a ideia de inserir na Constituição a garantia à felicidade. A proposta, que passou a ser chamada de PEC da Felicidade, estabelece que os direitos sociais básicos são fatores fundamentais para a conquista pelo cidadão da satisfação e da felicidade. A iniciativa, encampada pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF), deve ser protocolada no Senado já na próxima quarta-feira.
Procurado pelo Congresso em Foco para opinar sobre o assunto, o deputado Chico Alencar avalia com otimismo o início da tramitação no Senado. “Essa emenda vai passar, eu não tenho dúvidas. Vamos ter a tramitação normal e uma aprovação unânime”, destaca. “A felicidade é um direito essencial do ser humano e tem a mesma importância de direitos básicos como educação, saúde e cultura”, completa.
Pela proposta, a emenda deverá ser inserida no artigo 6° da constituição, que trata dos direitos sociais. Pela legislação atual, a constituição trata hoje como prioridade os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Com a modificação, o texto acrescentaria que tais direitos são fundamentais para a conquista da felicidade.
O texto final da PEC está nas mãos do senador Cristovam Buarque, que deverá fazer as modificações da proposta até o início da próxima semana. Após protocolada na secretaria-geral da Casa, ela precisará de pelo menos 27 assinaturas para que possa ser encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que ficará encarregada em verificar a admissibilidade jurídica.
Na entrevista que concedeu nesta quarta-feira (16) ao Congresso em Foco, o deputado Chico Alencar foi categórico nas ponderações. Para ele, o Estado tem obrigação de se posicionar sobre o assunto na Constituição federal e garantir os mecanismos pela busca à felicidade. Alencar também avalia que a PEC permitirá ao parlamento brasileiro discutir pela primeira vez um assunto que há tempos já deveria ter sido tratado pelo Congresso Nacional.
Confira a entrevista:
Congresso em Foco - O senhor acha que a felicidade é algo possível de ser garantido pelo Estado e incluído na Constituição?
Chico Alencar – A Constituição do Brasil, além da afirmação de direitos objetivos, tem um valor simbólico. Incorporar esse direito à felicidade que vem através de outros direitos fundamentais e concretos, como a educação, a saúde, a moradia, o bem estar material, é muito bom. Eu acho que agregar esse elemento de subjetividade, mas indicando não aquela felicidade que cada um descobre por razões filosóficas, religiosas ou existenciais, mas aquela que deriva de condições dignas de vida. Isso tem a ver com a Lei e isso precisa sim estar na Constituição.
E o senhor acredita que a proposta contará com o apoio que realmente precisa entre as bancadas no congresso para seguir adiante?
Essa é uma emenda constitucional que vai passar. Ninguém vai ser contra. Eu a comparo com aquela que inseriu o direito à alimentação como direito fundamental do povo brasileiro. Ela teve uma tramitação demorada, como é natural em toda emenda constitucional, mas passou sem contestações. Nesse caso também, de incorporar o direito à felicidade nesse capítulo mais geral dos direitos fundamentais concretos. Nós vamos ter a tramitação normal da PEC, mas a aprovação unânime. Eu não imagino quem possa ser contra isso.
E por quais motivos o senhor passou a defender o tema? Qual a grande importância da felicidade para o ser humano na sociedade contemporânea?
Todo ser humano tem fome de pão e de beleza. O que compete ao Estado, ao poder público, à política, é garantir o direito ao pão. Saciar as pessoas todas, ainda mais em uma sociedade injusta e desigual como a nossa. A beleza fica nesse elemento da subjetividade. É claro que o Estado e o poder público têm que garantir a todos o acesso à cultura, que está junta, inclusive, com o acesso à educação. Mas, no que diz respeito à isso, o pão, inclusive o pão da cultura, é dever do Estado e deve estar na Constituição. O elemento da felicidade individual e psicológica aí é assunto privado de cada um.
Quem é conta a emenda argumenta que o Estado já é incapaz de garantir direitos como a educação e a saúde. Como vai assegurar algo tão subjetivo como a felicidade?
Eu acredito que aqueles que não têm entusiasmo pela proposta vão dizer que ela é inócua, que ela é simbólica, que ela não tem conseqüência prática, mas não para fazer um movimento de resistência ou oposição a essa emenda constitucional. Podem apenas não valorizá-la. E qualquer argumento que for apresentado nesse sentido vai merecer o contra-argumento de que a inserção do direito à felicidade está na declaração de independência dos Estados Unidos, de 1776, e é uma felicidade que a gente está vinculando à fruição dos direitos sociais que já estão assegurados pelo menos no texto da Constituição. Falta muito para assegurá-los na prática para todos os brasileiros. Com essa perspectiva da busca da felicidade através da garantia do direito elementar da educação, casa, da moradia e do trabalho, da vida digna, a gente consegue superar qualquer resistência.
Comparado a outras propostas, a PEC da felicidade é só mais uma proposta que chega ao Congresso para aguardar uma longa tramitação ou o senhor acredita que ela irá realmente ter possibilidades de ganhar a adesão dos parlamentares, inclusive para ter uma tramitação mais acelerada?
Já tivemos uma audiência pública no Senado, que foi muito rica e interessante, e provocou uma discussão que não é muito usual no parlamento. Inclusive sobre o que é a felicidade, o que é o bem estar. O filósofo Freud, em 1930, escreveu um texto muito importante falando do mal estar na cultura, dizendo que os valores da vida passaram a ser o prestígio, o sucesso, o poder e o dinheiro. Isso na verdade amplia a angústia humana. Então, a gente vai poder fazer uma discussão que a sociedade do consumo contínuo mascara. Ver o sentido mais profundo dos valores materiais que levam à felicidade do ser humano. Hoje você tem muitos bens materiais, mas nunca como antes se vendeu tanto psicotrópico, barbitúrico e calmante. Algo está errado. Há um mal-estar também agora, tantos anos depois, tantas décadas depois que Freud denunciou essa situação ainda na primeira metade do século passado. Então esse debate vai ser muito bom. Agora, eu insisto... eu não vejo que haja muita resistência à PEC a não ser a resistência da inércia, de achar que colocar a busca da felicidade na Constituição não seja algo importante.
Então o senhor acredita que o Legislativo estava em dívida? Os deputados e senadores já deveriam ter se posicionado para garantir a felicidade na forma de Lei à sociedade?
Sem dúvida alguma. Eu sou autor de um projeto que recupera o lema positivista original e recoloca na bandeira brasileira o amor, pois o lema é o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. Ficou só a ordem e o progresso. E na prática da história republicana funciona da seguinte forma: ordem para os de baixo, progresso só para uns poucos de cima. Ou seja, é preciso colocar amor na bandeira. A mesma coisa eu posso dizer sobre a busca pela felicidade, que tem mais concretude até do que o simbólico do amor na bandeira. Então, eu acho que a gente vai conseguir e deve passar essa ideia adiante

18/06/2010

Comer e Rezar em Istambul

Em Istambul,  as especiarias...
Sophia é sabedoria.  A mesquita que um dia foi Igreja
Na mesquita azul

17/06/2010

Na calçada com Pessoa e com Montaigne

Eu, em frente a casa do Proust
Em Paris ou Lisboa há gente interessante a cada esquina, a cada rua. No vaivém dos boulevares há sempre detalhes que ninguém mais vê e os turistas desconhem... Da casa onde morou Marcel Proust à escultura de Montaigne. Minúcias que surpreendem.
A escultura de bronze do Montaigne fica bem na frente da Sorbonne. Ele, o Montaigne, está sentado, de mãos cruzadas e com cara de feliz.  E tão próximo da calçada que é um convite ao carinho... nos pés... O filósofo disse certa vez que  havia entregue o seu coração a Paris desde a  mais remota infância ( a frase   acompanha a escultura ) mas as pessoas gostam mesmo é de seus pés..
um detalhe do sapatinho 
 Pois é,  Montaigne, em bronze, está com o sapatinho “encerado” pelas mãos de turistas e estudantes que não resistem e tocam o bico do sapato ao passar.   Montagne tem os pés calçados à moda antiga, em modelo feminino e de salto alto.  O close chama atenção. Afinal, o que seriam das esculturas se não recebessem o carinho despretencioso de alguém que passa?
um carinho, de leve
Em Lisboa, o Pessoa também na calçada. Só que com ele a gente senta e conversa.... Ele está sempre disponível em frente ao Café Brasileira: e eu ficaria, se pudesse, um dia com ele,de mãos enlaçadas! pena que a fila dos turistas seja tão grande para uma simples foto como esta...
eu e ele... o Pessoa

"Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar."


30/03/2010

No Caldeirão Barroco

Em livro de excessos, José Eduardo Agualusa traça estranho painel de personagens que vagam numa Angola onde tudo parece prestes a ruir (texto publicado no Correio Braziliense em 27/03)

Elza Pires de Campos

Especial para o Correio



Sob a luz de um relâmpago um corpo cai na cidade de Luanda durante uma tempestade tropical, diante de um jornalista atônito, que presencia a cena num clarão de alguns segundos. Com esta imagem surreal, situada em uma Angola no ano de 2020, o escritor angolano José Eduardo Agualusa tece o seu mais novo romance, Barroco tropical.



Tanto a narrativa recheada de exageros quanto o excesso de personagens que ele apresenta, um a um, poderiam desanimar o leitor incauto e também assustado. Mas, os excessos se encaixam perfeitamente ao barroco proposto. É um livro de excessos. Que retrata uma Angola onde tudo parece cair, ou ruir, como aquele corpo de mulher — nua, negra e de braços abertos — a rasgar o céu.



O jornalista é Bartolomeu Falcato, escritor e cineasta, que busca, em toda a trama, desvendar o mistério daquela morte. Na caçada, desfila para o leitor um estranho painel de personagens. Todos, sem dúvida, desprotegidos e perseguidos, uma das singularidades de Agualusa. Anões, albinos, anjos ou loucos. Eles se movem numa epifania em meio a forças ocultas, rituais, feitiçarias. Um governo autoritário e pessoas perseguidas e acusadas da prática da chamada medicina tradicional, que Agualusa retira do mundo real, em recortes de jornais. E transporta para cenas descritas em ritmo cinematográfico, num estilo muito próximo da prosa poética , o que longe de desanimar quem lê, confere ao romance um poder de envolvimento difícil de resistir do começo ao fim.



Nesse caldeirão cultural se apresenta a África de língua portuguesa. No fim do romance há um glossário de termos angolanos que ajuda na compreensão do texto. Considerado, ao lado de Mia Couto, um dos renovadores da literatura em língua portuguesa na África, Agualusa também incorpora essa diversidade.



De origem indiana, ele nasceu na Angola colonial, em 1960, e divide sua vida entre Lisboa, Luanda e o Brasil. Tem sempre um pé em todos os espaços da língua portuguesa. É a ponta africana deste triângulo que ele coloca em evidência. Em cada capítulo parênteses para resumir ou provocar reflexões sobre Angola. Passado, presente e futuro se misturam.



Teia de medo

Tipos, personagens principais e secundários, aparecem num leque tão exagerado quanto diferenciado. Para evitar que o leitor se perca totalmente, são pacientemente costurados na apresentação inicial, em uma teia de medo: os estilistas gêmeos e anões Esaú e Jacó, idênticos, que moravam num desativado elevador que só desce, não sobe mais (ascensor ou descensor?); Tata Ambroise e o seu Labirinto de Deu, francês que reuniu centenas de loucos, todos antigos combatentes da guerra num local sem teto e onde os doentes mentais ficavam nus e acorrentados. Ali se pratica a chamada medicina tradicional, ou seja, um tratamento que mistura penas mágicas, feitiçarias e rituais macabros. O sanatório realmente existiu no pós-guerra, em Luanda. Tem ainda Rato Mickey, ex-soldado que trabalhava na remoção de minas até que um dia teve o rosto completamente desfigurado por uma delas. Passou a usar a máscara que lhe confere o apelido.



Nas noites de Luanda, no submundo de rituais remotos, sob um manto de medo, resquícios das origens culturais africanas, os personagens se dirigem ao bar “Orgulho Grego” onde uma inusitada mãe mocinha os acolhe, orienta, aconselha em consultas, joga os búzios. Mocinha é brasileira e mãe de santo. Chegou a Luanda já aos oitenta anos, vinda da Bahia e em busca de um marido africano. Casou-se com um branco, português. É no embalo do encantamento e da magia que o jornalista Bartolomeu Falcato se lança em busca de um fio qualquer que esclareça o enigma inicial. O mesmo jornalista que Agualusa transporta de sua obra anterior, As mulheres de meu pai. Falcato aparece agora como um elo entre os dois romances, doze anos mais velho, e num outro contexto. Como provoca Agualusa,“Quem não quer saber do que acontece a um personagem depois do fim?”

22/02/2010

LENDO LOLITA EM TEERÃ

João Domingos

Mesmo sendo um leigo em política, religião, questões bélicas e corrida nuclear, é possível entender um pouco do que hoje é o Irã pela leitura do romance de base histórica Lendo Lolita em Teerã. Num texto sensível, a autora, a irianiana Azar Nafisi, de 57 anos, consegue passar ao leitor o que foi o Irã revolucionário após a queda do xá Reza Pahlevi, em 1979, a briga que se deu pelo poder entre os diversos grupos revolucionários, a completa vitória dos aiatolás, o que tirou do regime a esperança de liberdade e o transformou num instrumento de terror e a guerra com o Iraque.
Descendente de uma família que por 800 anos se destacou entre a intelectualidade persa, Azar Nafisi estudou na Inglaterra, Suíça e Estados Unidos. Nos EUA ela participou dos protestos contra a ajuda dos norte-americanos ao regime do xá. Com a queda de Reza Pahlevi, voltou a seu país para dar aulas de literatura inglesa na agitada e revolucionária Universidade de Teerã, pensando sempre no avanço da democracia, da garantia dos direitos individuais e, principalmente, na liberdade da mulher. Ocorreu tudo ao contrário. O regime se fechou, as mulheres passaram a ser reprimidas, obrigadas a usar o véu em público e a serem submetidas a testes de virgindade. Azar foi jogada para fora da universidade.
Para não enlouquecer, ela passou a dar aulas clandestinas em sua casa a sete alunas nas quais confiava. Leram e interpretaram Scott Fitzgerald, Henry James e Jane Austen, mas sobretudo Vladimir Nabokov, autor de Lolita. Num dos livros de Nabokov, o personagem principal, preso, é obrigado a dançar com o próprio carcereiro, e tem ordens para não sonhar, porque sonhar significa buscar a liberdade.
Nas suas leituras, as oito mulheres concluem que, como no romance Lolita, em que o quarentão Humbert estupra uma menina de 12 anos, a ditadura expõe os cidadãos à dor física e à tortura. Na interpretação delas, a tragédia maior não é o estupro, mas o confisco individual de uma vida por outra. Lolita não tem para onde ir, pois depende de Humbert para tudo. Ao mesmo tempo em que ele faz de tudo para possuí-la, tenta transformá-la em sua fantasia e seu amor, mas a destrói. Nas palavras da própria Azar: “Assim é a vida numa sociedade totalitária. Um mundo de solidão, em que o Estado é o salvador e o carrasco”.

João Domingos é repórter do jornal O Estado de s. Paulo

Etiquetas nos produtos para um planeta mais limpo

Além do preço, da validade do produto, da composição ( com ou sem glútem) o consumidor agora também terá direito a saber quanto de C02 (dióxido de carbono) foi emitido na atmosfera durante toda a produção e vida útil daquele produto.

A novidade já virou lei na França. A partir de 2011 os consumidores franceses serão informados sobre os quilos de dióxido de carbono emitido ao longo de ciclo de vida de cada produto comprado nas prateleiras dos supermercados. A rede Casino, de supermercados já tem produtos rotulados a partir da nova Lei. Chamadas de medidas concretas pelo planeta, a série de recomendações da nova Lei Ambiental francesa prevê a proibição a partir deste ano de lâmpadas que consomem mais energia, investimentos em linhas ferroviárias de grande velocidade, introdução do princípio do poluidor-pagador durante a coleta de lixo para incentivar a coleta seletiva junto aos consumidores e aplicação da norma de baixo consumo de água e energia em todos os novos empreendimentos imobiliários.

15/01/2010

Uma Boa Ideia



Legumes e frutas orgânicos ao sair do metrô


Começou em Londres no café Konstam que vende 80% dos produtos locais- frutas e legumes – na região onde passa o metrô. Agora também em Paris a empresa SNCF – que administra o metrô da cidade – abriu espaço para pequenos estandes de cestas orgânicas facilitando o encontro de produtores e consumidores. No período que vai das 16hs às 19hs há pontos de vendas em várias estações com produtos colhidos no dia. Frutas da estação, legumes, cogumelos. As cestinhas estão acompanhadas de receitas. A iniciativa teve tanto sucesso que no final do ano 15.000 cestas foram vendidas em 12 estações de metrô. A expectativa é que a adesão dos consumidores aumente ainda mais este ano. Fonte: http://www.mescoursespourlaplanete.com/Actualites/

10/01/2010

O Sentido da Vida nas Pedras de Itaparica




Em O Albatroz Azul, seu romance mais recente, João Ubaldo recorre a uma narrativa despretenciosa para evocar suas memórias na Ilha de Itaparica
Elza Pires de Campos
Especial para o Correio-publicado em 31/12/2009
Façamos de conta que desconhecemos quem é João Ubaldo Ribeiro, vencedor do prêmio Camões de Literatura no ano passado, o mais alto galardão da literatura portuguesa, autor de romances históricos e sucessos de venda e de público como Viva o povo brasileiro, Sargento Getúlio e A casa dos budas ditosos. Pode-se imaginar também que, de João Ubaldo, saibamos apenas que nasceu em Itaparica, aquela ilha que os índios tupinambás assim chamaram por estar cercada de pedras (Ita-parica), situada muito próxima da Baía de Todos os Santos.
Só assim é possível perceber a forma que veste O Albatroz Azul, o livro de João Ubaldo lançado agora pela Nova Fronteira. Numa narrativa aparentemente simples e despretensiosa, o texto flui como água, o tempo transcorre na “lambida sonolenta da água nos costados dos barcos apoitados” e no ar com um cheiro de “uma mistura almiscarada de maresia, peixe fresco, comidas de tabuleiro e mingau, café torrado, melaço de cana e bosta de vaca”. É para sua ilha natal que João Ubaldo retorna e situa Tertuliano Jaburu, protagonista desta curta história.
Assim como não é por acaso que esta trama se passe em Itaparica, também não é nada aleatório o nome Tertuliano para o personagem principal. São Tertuliano foi um dos mais importantes escritores e filósofos cristãos da língua latina. É o autor da famosa frase “creio porque é absurdo”.
É justamente no estreito limite da crença com o absurdo que João Ubaldo constrói mais esta deliciosa história. Que vem entremeada por velhos ditados, saberes locais e filosóficos como “o explicar e o compreender, tão diferentes entre si que caminham separados”.
Mistérios
Na ilha de Itaparica, Tertuliano Jaburu é aquele velho sábio que está justamente de cara para o passado. Sua vida foi toda na ilha, seus amigos estão lá, sua família, seus muitos filhos com muitas mulheres, seus pais, avós e bisavós. Da quina da rampa do Largo da Quitanda e no caminho até a Bica,Tertuliano revê sua vida, carregado de mistérios, crenças, negros e brancos, Portugal e Brasil. Não por acaso, ainda, a história toda se passa no ano em que nasceu João Ubaldo, 1941. O narrador, por intermédio de Tertuliano, entre benzeduras e banhos de folha, costura e tece a trama principal deste livro lançado exatamente quando o autor completa cinco décadas de carreira literária.
No mercado da Ilha, no meio das fileiras de balaios cheios de peixe ou ao entardecer, quando os raios de sol refletem os “tons de açafrão” nas folhas das amendoeiras, Tertuliano nos apresenta seus amigos, o alfaiate Nestor Gato Preto, companheiro de décadas e possuidor de grande familiaridade com o oculto, o sagrado e o espiritual, adivinho, chegado desde tempos imemoriais às sociedades secretas. Além dele, tipos como Dona Roxa Flor, Iá Cencinha, Cipriano Mau Sorriso, Julia Mocinha, a negra mãe de santo que, católica fervorosa, jura não participar de cultos afro; Altina Pequena, a parteira que pilotara mais de três mil nascimentos na ilha; Natálio Querosene ou o barbeiro Nascimento, cujo falar repolhudo exige do autor o esmero linguístico dos seus grandes clássicos.
Afinal, em que lugar do mundo poderia existir uma barbearia com o nome de Tricotomia Parnaso? O verbete tricotomia indica um ramo que se divide em três partes e Parnaso nada mais é do que o monte grego onde sempre viveram os poetas. É na barbearia que Tertuliano se recolhe para providenciais desabafos com o barbeiro Nascimento e seu ajudante.
A trama se passa em dois dias. Somente dois dias na vida de Tertuliano, que, naquela noite de lua cheia se prepara para, talvez, o maior acontecimento da sua vida. Iria ter um neto homem. Ele, que já sabia e adivinhara o sexo do bebê desde que observou a barriga da sua filha Belinha; ela, casada com Saturnino que, como alguns homens, só conseguia fazer nascer mulheres e já fizera nascer em Belinha sete meninas encarreiradas. Mas agora sua filha daria à luz um homem. E não se tratava de um menino qualquer. Era um neto especial. A mesma certeza que embalava a vinda do neto leva Tertuliano a se preparar para a morte, num rito de passagem tão natural e inusitado quanto a existência de um Albatroz Azul.
Tertuliano passa seu dia na tarefa de escolher o nome do neto. Consulta o padre sobre o santo do dia. Nascido no dia de São Raymundo, Raymundo Penaforte, com ipsilone mesmo, o padroeiro da Ilha de Itaparica. O amigo Gato Preto sugere o padrinho. E para que o inusitado e o absurdo se completem, na hora do nascimento a velha parteira Altina Pequena observa, assustada, da janela aberta sob a luz da lua cheia, que o parto não seria nada fácil. A criança estava virada.
O neto de Tertuliano, menino de sorte, teria um padrinho rico e seria um advogado. Ele nasce, ou, como diz o barbeiro Nascimento, “vem à luz da vida com o uropígio voltado para selene” — o garoto para quem os profetas (ou vates) locais previram um futuro glorioso, nascera, literalmente, de cu para a lua.
É neste passeio sobre o sentido da vida, o inusitado do passado e das previsões do futuro, que o mais recente livro de João Ubaldo funciona como um olhar bem-humorado para as memórias do seu próprio passado, na bela ilha onde ele nasceu.
O Albatroz Azul De João Ubaldo Ribeiro Editora Nova Fronteira 224 páginas Preço: R$ 39,90