30/03/2010

No Caldeirão Barroco

Em livro de excessos, José Eduardo Agualusa traça estranho painel de personagens que vagam numa Angola onde tudo parece prestes a ruir (texto publicado no Correio Braziliense em 27/03)

Elza Pires de Campos

Especial para o Correio



Sob a luz de um relâmpago um corpo cai na cidade de Luanda durante uma tempestade tropical, diante de um jornalista atônito, que presencia a cena num clarão de alguns segundos. Com esta imagem surreal, situada em uma Angola no ano de 2020, o escritor angolano José Eduardo Agualusa tece o seu mais novo romance, Barroco tropical.



Tanto a narrativa recheada de exageros quanto o excesso de personagens que ele apresenta, um a um, poderiam desanimar o leitor incauto e também assustado. Mas, os excessos se encaixam perfeitamente ao barroco proposto. É um livro de excessos. Que retrata uma Angola onde tudo parece cair, ou ruir, como aquele corpo de mulher — nua, negra e de braços abertos — a rasgar o céu.



O jornalista é Bartolomeu Falcato, escritor e cineasta, que busca, em toda a trama, desvendar o mistério daquela morte. Na caçada, desfila para o leitor um estranho painel de personagens. Todos, sem dúvida, desprotegidos e perseguidos, uma das singularidades de Agualusa. Anões, albinos, anjos ou loucos. Eles se movem numa epifania em meio a forças ocultas, rituais, feitiçarias. Um governo autoritário e pessoas perseguidas e acusadas da prática da chamada medicina tradicional, que Agualusa retira do mundo real, em recortes de jornais. E transporta para cenas descritas em ritmo cinematográfico, num estilo muito próximo da prosa poética , o que longe de desanimar quem lê, confere ao romance um poder de envolvimento difícil de resistir do começo ao fim.



Nesse caldeirão cultural se apresenta a África de língua portuguesa. No fim do romance há um glossário de termos angolanos que ajuda na compreensão do texto. Considerado, ao lado de Mia Couto, um dos renovadores da literatura em língua portuguesa na África, Agualusa também incorpora essa diversidade.



De origem indiana, ele nasceu na Angola colonial, em 1960, e divide sua vida entre Lisboa, Luanda e o Brasil. Tem sempre um pé em todos os espaços da língua portuguesa. É a ponta africana deste triângulo que ele coloca em evidência. Em cada capítulo parênteses para resumir ou provocar reflexões sobre Angola. Passado, presente e futuro se misturam.



Teia de medo

Tipos, personagens principais e secundários, aparecem num leque tão exagerado quanto diferenciado. Para evitar que o leitor se perca totalmente, são pacientemente costurados na apresentação inicial, em uma teia de medo: os estilistas gêmeos e anões Esaú e Jacó, idênticos, que moravam num desativado elevador que só desce, não sobe mais (ascensor ou descensor?); Tata Ambroise e o seu Labirinto de Deu, francês que reuniu centenas de loucos, todos antigos combatentes da guerra num local sem teto e onde os doentes mentais ficavam nus e acorrentados. Ali se pratica a chamada medicina tradicional, ou seja, um tratamento que mistura penas mágicas, feitiçarias e rituais macabros. O sanatório realmente existiu no pós-guerra, em Luanda. Tem ainda Rato Mickey, ex-soldado que trabalhava na remoção de minas até que um dia teve o rosto completamente desfigurado por uma delas. Passou a usar a máscara que lhe confere o apelido.



Nas noites de Luanda, no submundo de rituais remotos, sob um manto de medo, resquícios das origens culturais africanas, os personagens se dirigem ao bar “Orgulho Grego” onde uma inusitada mãe mocinha os acolhe, orienta, aconselha em consultas, joga os búzios. Mocinha é brasileira e mãe de santo. Chegou a Luanda já aos oitenta anos, vinda da Bahia e em busca de um marido africano. Casou-se com um branco, português. É no embalo do encantamento e da magia que o jornalista Bartolomeu Falcato se lança em busca de um fio qualquer que esclareça o enigma inicial. O mesmo jornalista que Agualusa transporta de sua obra anterior, As mulheres de meu pai. Falcato aparece agora como um elo entre os dois romances, doze anos mais velho, e num outro contexto. Como provoca Agualusa,“Quem não quer saber do que acontece a um personagem depois do fim?”