16/11/2011

O infinito de Kuzama

foto: João Domingos

Ela tem 82  anos , trabalha intensamente e expõe pela primeira vez em Paris.  Yayoi Kusama nos leva ao infinito nesta instalação do Centro Cultural Georges Pompidou em Paris. Ela brinca com bolinhas e luzes coloridas. Azuis, verdes e vermelha. A sensação é de ausência e do limite pequeno entre o homem e o espaço. Lindo!!! mais detalhes www.centrepompidou.fr

21/09/2011

No caminho de Rilke


ORPHEU E EURIDICE
Um dia li este poema na madrugada. E consegui enxergar algo que antes não via:   esta distância tão pequena de dois mundos: dos vivos e dos mortos. A surpresa reveladora de Eurídice. Ela já estava em outro mundo....

ORPHEU.EURIDICE.HERMES

Eram as minas ásperas das almas.
Como veios de prata caminhavam
Silentes pela treva. Das raízes
Brotava o sangue que parece aos vivos,
Na treva, duro como pórfiro. Depois
Nada mais foi vermelho

Somente rochas,
Bosques imateriais. Pontes sobre o vazio
E o lago imenso, cinza e cego,
Que sobre o fundo jaz, distante, como
Um céu de chuva sobre uma paisagem
Por entre os prados, suave, em plena calma
Deitado, como longa veia branca,
Via-se o risco pálido da estrada

Desta única via vinham eles.

`A frente o homem com o manto azul,
esguio, olhar em alvo, mudo, inquieto.
Sem mastigar, seu passo devorava a estrada
Em grandes tragos; suas mãos pendiam
Rígidas, graves, das dobras das vestes
E não sabiam mais da leve lira
Que brotava da ilharga como um feixe
De rosas entre ramos de oliveira.
Seus sentidos estavam em discórdia:
O olhar corria adiante como um cão,
Voltava, presto, e logo andava longe,
Parando, alerta, na primeira curva,
Mas o ouvido estava como um faro.
`As vezes parecia-lhe sentir
a lenta caminhada dos dois outros
que o acompanhavam pela mesma senda,
mas só restava o eco dos seus passos
a subir e do vento no seu manto.
A si mesmo dizia que eles vinham
Gritava, ouvindo a voz esmorecer
Eles vinham, os dois, vinham atrás,
Em tardo caminhar. Se ele pudesse
 voltar-se uma só vez (contemplá-los
não fosse o fim de todo empreendimento
nunca antes intentado) então veria
as duas sombras a seguir silentes:

O deus das longas rotas e mensagens,
Capacete sobre os olhos claros,
O fino caduceu diante do corpo,
Um palpitar de asas junto aos pés
E, confiada à mão esquerda: ela
A mais amada, essa por quem a lira
Chorou mais que o chorar das carpideiras,
Por qum se ergueu um mundo de chorar,
Um mundo com florestas e com vales,
Estradas, povos, campos rios, feras:
Um mundo-pranto tendo como o outro
Um sol e um céu calado com seus astros,
Um céu-pranto de estrelas desconformes –
A mais amada.

Ia guiada pela mão do Deus,
O andar tolhido pelas longas vestes,
Incerto, tímido, sem pressa.
Ia dentro de si,como esperança
E não pensava no homem que ia `a frente,
Nem no caminho que subia aos vivos.
Ia dentro de si. E o dom da morte
Dava-lhe plenitude.
Como um fruto em doçura e escuridão,
Estava plena em sua grande morte,
Tão nova que não tinha entendimento

Entrara em uma nova adolescência
Inviolada. Seu sexo se fechava
Como flor em botão no entardecer
E suas mãos estavam tão distantes
De enlaçar outro ser que mesmo o toque
Levíssimo, do guia, o Deus ligeiro,
A magoava por nímia intimidade.
Não era mais a jovem resplendente
Que ecoava nos cantos do poeta,
Nem o aroma do leito do casal
Nem ilha e propriedade de um só homem.

Estava solta como os seus cabelos,
Liberta como a chuva quando cai,
Exposta como farta provisão

Agora era raiz.

E quanto enfim o deus
a deteve e com voz cheia de dor,
disse as palavras: “Ele se voltou “–
ela não compreendeu e disse: “Quem?”

Mas pouco além, sombrio, frente `a clara
Saída se postava alguém, o rosto
Já não reconhecível. Esse viu
Em meio ao risco brando do caminho
O deus das rotas, com olhar tristonho,
Volver-se, mudo, e acompanhar o vulto
Que retornava pela mesma via,
O andar tolhido pelas longas vestes,
Incerto, tímido, sem pressa.

Autor: Rainer Maria Rilke 
tradução de Augusto de Campos

16/08/2011

Átimo de interlúnio


Taete, na Holanda em maio/2011

No relance de um soluço
 A menina está de   luto
Quatro letras tem seu nome
Quatro estações seu desgosto

Na estação  do alicerce
Estava um  pano puído
Desbotado pelo tempo

Seguimos pela mente aberta
 fundos rasgos na memória
neurônios envelhecidos
pendurados num  varal
ao sabor de um vento úmido
ao longe, verdade-luto
impoluto

Na estação da justiça
Ha silêncio de vencidos
Só um grito entre dois sóis

Na derradeira parada
Holanda e Terras Baixas
Pontuada de  moinhos
Canais e mares distantes

Resta ausência,
 vida curta até fugaz
Um átimo de interlúnio 

26/02/2011

Mosaico de Simplicidade

Meu Tipo de Garota  de Buddhadeva Bose


Elza Pires de Campos
publicado no Caderno Pensar do Correio Braziliense em 26/02

Dois lançamentos da Companhia das Letras celebram países asiáticos vizinhos, a Índia e o Paquistão, e seu mosaico de culturas tão antigas quanto pouco conhecidas entre nós. O indiano  Buddhadeva Bose   e o paquistanês Daniyal Mueenuddin  desvendam, em contos, a atmosfera de mistérios, cheiros, cores, sabores e diferentes matizes  de um literatura que já nasceu mergulhada em um quebra-cabeças de línguas e dialetos diferentes.  Na  riqueza cultural dos contos destes dois livros há em comum apenas um adjetivo: a simplicidade.
O indiano Buddhadeva Bose (1908-1974) foi um dos mais importantes poetas do século XX, natural da região de Bengali, norte da índia.  Ele produziu poemas, romances e contos, além de ser professor e criador do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Jadavpur, em Calcutá, e tradutor de autores ocidentais como Baudelaire e Rilke.
Em “Meu tipo de garota”, Bose transfere a narrativa para quatro senhores de meia idade. Um burocrata, um médico, um empreiteiro e um poeta e escritor estão sentados em silêncio na sala de espera da estação ferroviária de Tundla,  norte da Índia.
A noite é fria e a monotonia da espera é interrompida, de repente, com a entrada de um casal jovem e apaixonado. Agarrados um ao outro, o casal busca  um lugar seguro e tranquilo para ficarem a sós. Mas logo deixam  o local. A cena do jovem casal e a notícia do atraso do trem que os deixaria ali a noite inteira quebram de repente o silêncio e a distância entre os quatro passageiros. Eles decidem passar o tempo e esquecer o frio contando suas próprias histórias- de amor e saudade-enquanto aguardam .
A única regra estabelecida é a sinceridade no relato. O empreiteiro lembra Malati, filha inabalável de um professor. O burocrata fala de Pakhi e dos beijos numa noite de luar. O médico conta sobre como descobriu e encontrou a sua esposa, Bina,  e da paixão dela por seu amigo, Ramen. Finalmente é o poeta que conta a história mais singular e delicada dos quatro contos. Ele recorda a sua própria paixão e de outros dois garotos  por  Toru, uma belíssima jovem que um dia chega na aldeia em que moravam. A emoção na narrativa do poeta convence a todos que aquela sim, seria dos quatro relatos a verdadeira história de amor.                                                                                                                                                                          Os episódios ocorrem entre meados de 1920 e a Segunda Guerra Mundial (o livro foi publicado pela primeira vez em 1951) e retrata a sociedade bengali daqueles tempos.
Se o Ocidente conhece a literatura indiana por intermédio do premiado Salman Rushdie, que deixou o seu país  aos 18 anos e foi morar na Inglaterra, os editores redescobrem agora esta geração de poetas e escritores da qual Bose é um dos principais representantes. Ao contrário de Rushdie,  que com outros faz parte dos escritores indianos da “diáspora”, Bose e sua geração permaneceram na Índia, retratando o país de dentro e, mesmo em contato com os escritores ingleses, tentaram preservar as tradições buscando seus próprios rumos literários.
Bose sempre viveu em Calcutá e transformou sua casa em local de encontros de alunos, escritores, intelectuais e editores que passavam noites em animadas conversas literárias embaladas por infinitas xícaras de chás aromáticos.
Vizinho da Índia, um Paquistão quase feudal se revela “Em outros quartos, outras surpresas” na luta pela sobrevivência a qualquer custo  que pontua os oito contos do paquistanês Daniyal Mueenuddin. O desemprego, as diferenças sociais, a pobreza e a instabilidade para os jovens e  velhos costuram todas as histórias, interligadas por um personagem comum a elas: o rico proprietário de terras K. K. Harouni. Do eletricista Nawabdin, que vive nas terras do patrão, mas o engana sempre buscando pequenos serviços por fora , à jovem Husna que seduz o velho Harouni só para ter um local confortável para comer e dormir, ou Saleema, a doméstica  que dorme com o cozinheiro de Harouni na tentativa de não perder o trabalho, revela-se a tensão permanente dos personagens na  luta pela ascensão social.
Mueenuddin nasceu em 1963 e foi criado em Lahore, Paquistão, mas estudou nos Estados Unidos. Com este livro de contos ele foi finalista do Prêmio Pulitzer no ano passado e indicado para vários outros destaques na literatura de língua inglesa. Antes disso teve contos publicados na revista New Yorker.
Neste ambiente mergulhado na magia do Oriente, os contos de Mueenuddin e  Bose trazem mulheres vestidas em coloridos sáris, tatuadas em henna, cabelos negros e longos que elas penteiam e secam ao sol, amassando diariamente os chapattis, aquele pão achatado e feito numa chapa de cerâmica e ferro.  Homens que interrompem o trabalho e rezam várias vezes ao dia . A espiritualidade, as cores e os cheiros dos temperos e de jasmins sempre foram  um fascínio no Ocidente.  O Paquistão, com a maior população mulçumana do planeta, é ainda mais misterioso entre nós.
Apesar de hoje inimigos políticos, a literatura nesses dois países que um dia foram um só território  tem um singular fator de  unidade: o sânscrito. A literatura sânscrita percorre várias etapas ao longo do tempo, e só a epopéia Mahabharata, de data incerta, provavelmente do início da Era Cristã, é um composto de cem mil versos de trinta e duas sílabas.
Alicerce dos ensinamentos sagrados indianos e a língua dos brâmanes, o sânscrito  foi também a origem de inúmeras línguas  no norte da índia -- assim como o latim para as línguas romanas --  e durante séculos considerada a forma perfeita para a comunicação com os deuses. Se a diversidade linguística favorece o romance e o conto, é  sem dúvida interessante conhecer a literatura desta parte do Oriente.

Trechos:
“As  palavras finais do escritor flutuaram por algum tempo no ar abafado da sala, com ele sentado em silêncio diante daquela última pergunta não respondida. Não havia mais nele nenhum sinal de inquietação;.... e mesmo depois de calar, parecia que as palavras não tinham terminado; ele continuava escutando sua própria voz, sem cessar; por fim, como acontece quando se joga  pedra em uma poça d’água, as reverberações das palavras morreram também”  “Meu tipo de Garota”  Buddhadeva Bose
“Aos vinte e quatro anos, aquela vida dura ainda não havia deixado marcas nela e, quando sorria, suas covinhas a faziam parecer ainda mais nova, uma menina mesmo; ela  também conservava um pouco da gravidade de menina. Era verdade que o cozinheiro Hassan tinha conseguido tudo dela; como sempre, ela havia se entregado rápido demais”...  “Em outros quartos, outras supresas” Daniyal Mueenuddin


11/01/2011

O ritual dos "gajos"

Inês Pedrosa, escritora e jornlista

Elza Pires de Campos
Especial para o caderno Pensar
Publicado no Correio Braziliense em 08/01/2011

Em uma noite chuvosa de Lisboa cinco amigos se dedicam ao ritual  de beber e conversar.  Fazem isto há décadas. Uma vez por mês. Para curiosidade, ciúme e surpresa de suas esposas, amigas, amantes e parceiras.  Os gajos conversam sobre as gajas, para usar uma expressão bem comum ao português falado em Lisboa.
No último romance da escritora e jornalista portuguesa Inês Pedrosa ,  Os Íntimos,  publicado pela Editora Objetiva,  a fala masculina conduz o romance nas vozes dos cinco amigos. O médico oncologista Afonso e seus colegas de infância Augusto, Guilherme, Felipe e Pedro. No centro de cada narrativa partilhada entre eles, a vida sexual e afetiva de cada um.“`As vezes acho que nenhum de nós está a ouvir os outros, e invade-me uma sensação de felicidade. Ninguém é obrigado a ouvir ninguém.   Nem a falar”, ou  “Os homens não se ofendem com o alheamento dos amigos. Não fazem perguntas íntimas”.  
Assim, salpicado de aforismos que evidenciam as diferenças do masculino e do feminino,  Inês  acaba por lembrar  num longo esboço (apenas na temática, é claro) o baiano João Ubaldo Ribeiro em seu romance A Casa dos Budas Ditosos, publicado em 1999  também pela Objetiva. O livro de Ubaldo  é narrado por uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia,  que fala da sua própria vida e das infinitas possibilidades do sexo. Na verdade  o texto revela um Ubaldo que fala das mulheres e de sua percepção sobre elas . Em resumo, uma mulher ideal, aquela mulher que o homem gostaria de ver,  a partir de sua própria imaginação .
Sem entrar no debate sobre o que há de cada autor nos personagens, em ambos os romances,  ou seja, tanto Ubaldo quanto Inês  espreitam  o gênero oposto dando voz a um narrador de outro sexo. No caso de Os Íntimos há momentos curiosos em que a autora deixa transparecer , em cada diálogo,  ou nas entrelinhas destes, como é que uma mulher (ela própria ) pensa que os homens pensam e olham  as mulheres. “Os homens não se propõem a  resolver-nos os problemas, para depois nos atirarem à cara os problemas que nos resolveram. Não nos culpam”...filosofa, num diálogo, a amiga de um dos narradores...E  prossegue, pontuando-o de deliciosas expressões lusitanas como alcatifas (tapete), palrador (tagarela) miúda (garota) ou resmonear (resmungar).   Afinal,  o português no Brasil e em Portugal é a prova maior de que nas diferenças se encontram  preciosas riquezas.
Talvez cansado de responder a infindáveis perguntas sobre a  sua inspiração e a origem do personagem de seu livro mais famoso, o romancista francês Gustave Flaubert disse certa vez: “Madame Bovary sou eu”.  E chocou seus interlocutores. Emma Bovary,  com seus devaneios eróticos,  surge em 1856, em uma época que era totalmente proibido às mulheres qualquer  indício de desejo e transgressão. E Flaubert, curiosamente,  revela que uma das figuras femininas mais famosas da literatura seria, de fato, uma criação masculina.
Lançado no início deste ano em Lisboa Os Íntimos chega ao Brasil num momento em que uma mulher eleita presidente da República reivindica ser chamada de “presidenta”. Talvez  para além da flexão de um artigo a diferença  que separa os mundos masculino e feminino seja apenas uma questão de olhar.
Inês Pedrosa explica que ao deixar toda a sua narrativa para as vozes masculinas tentou apenas entender por que há certos rituais que são exclusivos dos homens, como os encontros em estádios de futebol ou restaurantes.  E mais do que isto, Inês explica que tentou neste livro “ser mais ousada na escrita, polir as frases, tirar-lhes o verniz e escrever sobre sexo de uma forma tão clara e crua quanto possível.” E nisto, o discurso dos homens ajudou.

05/01/2011

O Feijão e o Sonho

foto de Barbara Novaes



Mara Bergamaschi

A posse das oito[1] novas ministras de Dilma foi didática e interessante. Apesar de protocolar, este tipo de evento é também simbólico – por isso mesmo, revelador. Até de condutas estereotipadas – mas reais. Numa primeira comparação entre o que disseram os homens-ministros e o que disseram as mulheres-ministras surge uma sutil diferença: os homens foram todos afirmativos, anunciando projetos, metas e cifras ambiciosas. Alguns penderam para a grandiloquência, repetindo o batido “nunca antes” do ex-presidente Lula. Assim, soubemos que “o Brasil será o primeiro país tropical desenvolvido da história". Promessa é denominador comum entre homens? Parece que sim.
E as ministras? Mais feijão do que sonho. A fala de Iriny Lopes resume o que sobressaiu nos discursos das novatas. “Sou mineira, chego devagar. Melhor deixar um legado muito importante do que sair fazendo barulho e não conseguir fazer nada." Elas não foram evasivas, tocaram nas questões centrais de sua área, mas sempre com uma visão prática e realista. Iriny, que terá a missão de defender as mulheres, afirmou essa meta a partir de um exemplo do cotidiano. “Como vamos colocar as mulheres para trabalhar e serem autônomas se os filhos continuarem como tarefa exclusivamente feminina?” Sobre o aborto, foi cautelosa: disse que nenhuma mulher pode ser obrigada a ter um filho, mas deixou uma eventual iniciativa de mudança da lei para o Congresso. Discurso moderado também adotou a ministra da Igualdade Racial, Luiza de Bairros. Defendeu as cotas, mas sem imposição.
Até a mais poderosa das ministras, a do Planejamento, Miriam Belchior – que chorou e prestou homenagem ao ex-marido Celso Daniel, assassinado em 2002 – optou pela modéstia. Ela poderia ter recheado seu discurso com os bilhões do PAC sob sua administração, mas preferiu a economia doméstica, considerada outro ponto forte das mulheres. “É possível gastar com qualidade, fazer mais com menos”, reafirmou Miriam. Tereza Campello (Desenvolvimento Social), que já cuidava, como secretária-executiva, do Bolsa-Família, foi a única a acenar com benesses: disse que aumentará logo o valor do benefício. Talvez por estar no ministério há tempos, exagerou na apologia de suas realizações. Por fim, também mencionou o marido, Paulo Pereira, ex-tesoureiro do PT, como parte da “geração de homens orgulhosos de suas mulheres“.
Quem também prometeu austeridade no orçamento foi a ministra da Pesca, Ideli Salvati. “É um ministério bíblico, de multiplicar os peixes. Vamos ter que fazer o milagre de fazer mais com menos", disse. Ex-senadora, candidata derrotada ao governo de Santa Catarina, Ideli foi o tom dissonante da posse. Habituada à defesa intransigente do governo Lula, ela continua, mesmo sob nova direção, beligerante: disse que há “ignorância” sobre seu ministério e mandou os críticos “pescar”.
Jogo aberto - “Continuar não é repetir”, ensinaria Anna de Holanda, citando ninguém menos do que a chefe Dilma Rousseff. Autora do discurso de posse mais inspirado, a ministra da Cultura trouxe ao palco outra característica feminina: o gosto de discutir a relação. Desta vez, com a cultura. Disse que não quer “a casa arrumada pela metade”, que seu coração “bate pelos criadores” e prometeu atuar segundo os binômios “suavidade e firmeza” e “delicadeza e ousadia”. E concluiu: “Até aqui as pessoas têm consumido mais eletrodomésticos e menos cultura. Precisamos fazer o casamento da ascensão social com a ascensão cultural.” Para isso, apelou ao Congresso que conclua a votação do vale-cultura – um crédito de R$ 50,00 para este tipo de consumo destinado a trabalhadores que ganhem até cinco salários mínimos.
Coube à ministra de voz mansa, a deputada Maria do Rosário (Direitos Humanos), fazer a cobrança política mais contundente. Ela pediu ao Congresso que seja aprovada a criação da Comissão da Verdade sobre a ditadura, em tramitação desde maio passado. A comissão deve esclarecer os casos e identificar a autoria de torturas, mortes, desaparecimentos, ocultação de cadáveres. O assunto, que se relaciona diretamente com o passado da nova presidente, continua polêmico:o novo ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, já discordou. Na posse, disse que o “Brasil não deve olhar para trás”, pois isso seria “perda de tempo e não levaria a nada”.
No balanço geral, predominaram os ares da conciliação, exaltada pela presidente ao assumir o cargo. Isso foi percebido numa área que tem sido, segundo seus próprios interlocutores, “excepcionalmente tensa”: a comunicação do governo com a imprensa. Classificada como “jeitosa” por seu antecessor Franklin Martins, enquanto ele seria considerado “grosso”, a nova ministra, Helena Chagas, chegou avisando que não se discute liberdade de imprensa porque ela não está em questão. A pasta de Helena Chagas será certamente o termômetro da distensão.




[1] A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, foi reempossada: não houve, portanto, transmissão de cargo

02/01/2011

Retalhos do Cotidiano Feminino


A escritora canadense Alice Munro


Elza Pires de Campos
(publicado no Correio Braziliense em 01/01/2011)

As tragédias do cotidiano são como retalhos nos dez contos do mais recente livro da canadense Alice Munro; cada trapo, uma  vida pendurada no tempo; uma costura delicada a exigir paciência.
Seja nas montanhas cobertas de neve do inverno canadense ou nas falésias e piqueniques de verão, as personagens femininas ocupam todo espaço. Em vidas que se revelam, em alguns casos, apenas no intervalo de um soluço. Histórias curtas e rápidas, dentro de um rigoroso recorte. Aos 79 anos, Alice Munro  foi vencedora, no ano passado, do Prêmio Booker, um dos mais importantes  prêmios literários atribuídos anualmente a escritores de língua inglesa. Ao lado da também  canadense Margareth Atwood, Alice é considerada um dos expoentes da literatura daquele país do extremo norte-americano, uma especialista no gênero conto.
 Suas heroínas gravitam num universo tão comum que pode até confundir o leitor, pela simplicidade, pelo inusitado ou simplesmente pelo estranhamento dos detalhes. Mulheres ainda  jovens e outras já no final da existência, saudáveis, doentes, apaixonadas, viúvas solitárias, esposas traídas, comerciantes e serventes. Alguns contos podem se resumir em apenas uma frase: “eu cresci e  hoje estou velha...” .
         Na narrativa de Alice os tempos se misturam.  Talvez com o único objetivo de mostrar a alma das personagens.  O que leva o leitor a descobrir sempre uma  outra mulher por trás daquela que se apresenta,  como se fosse a sua irmã gêmea emocional.  As tragédias surgem nas filigranas cotidianas das inúmeras dificuldades do universo feminino. Aí está o segredo das maravilhas não reveladas por Alice.
Como a surpreendente senhora Nita, do conto “Radicais Livres”. Recém curada de um câncer, ela perde o marido, vítima de um infarto. Viúva,  mergulha na inércia do dia a dia, em uma casa cheia de pequenas lembranças que compõem sua solidão.  Tenta sobreviver até que um dia, totalmente distraída, abre a porta para um homem que ela pensava ter vindo verificar um relógio de luz.
Na verdade, ele era um assassino em fuga que acabara de matar toda uma família. O diálogo entre os dois é totalmente inusitado. Ela lhe oferece comida, ouve o seu relato e, como a Sherazade das Mil e Uma Noites, começa a contar histórias na tentativa de ganhar  tempo. Depois de vencer um câncer e ficar viúva, Nita percebe, na fração de alguns segundos e diante de um assassino, que ainda quer viver.
Assim como também tenta viver a jovem mãe que perde suas três crianças assassinadas pelo marido.  Em uma nova cidade, cabelos curtos, tingidos e espetados, um emprego de camareira em um hotel onde todos desconhecem seu passado, Doree trabalha, ocupa os pensamentos.  Das cicatrizes vai cuidando com auxílio da assistente social.
Nos outros contos há crianças perturbadas (como Kent, em “Buracos-profundos”),   bizarros predadores sexuais (“Wenlock Edge”) e narradores que rememoram e  descobrem  dentro de si,  quando ciranças, a capacidade de assassinato (“Charlene em Brincadeira de Criança”).
As flutuações do desejo feminino e as relações de amor e amizade também estão presente no último conto que dá nome ao livro, “Felicidade Demais”. Aqui Alice faz um recorte nos últimos momentos de  vida  de Sophia Kovalevsky, a primeira mulher a se tornar professora universitária de matemática na Suécia no final do século XIX.
Sophia nasceu na Russia, atuou como jornalista em São Petesburgo, se consagrou na Alemanha como romancista e matemática, militou politicamente na Comuna de Paris  e conviveu com várias personalidades da época.  Alice Munro ressalta suas habilidades, revela o fervor dos exercícios matemáticos que se misturam com uma ebulição de idéias literárias.  Como em vários personagens que habitam o mundo de Alice, e ela mesma reconhece, há  também neste conto material para um romance. Que ela, habilmente, resume em menos de vinte páginas.


(Felicidade Demais  -Alice Munro
  Companhia das Letras -339 pgs)