11/01/2011

O ritual dos "gajos"

Inês Pedrosa, escritora e jornlista

Elza Pires de Campos
Especial para o caderno Pensar
Publicado no Correio Braziliense em 08/01/2011

Em uma noite chuvosa de Lisboa cinco amigos se dedicam ao ritual  de beber e conversar.  Fazem isto há décadas. Uma vez por mês. Para curiosidade, ciúme e surpresa de suas esposas, amigas, amantes e parceiras.  Os gajos conversam sobre as gajas, para usar uma expressão bem comum ao português falado em Lisboa.
No último romance da escritora e jornalista portuguesa Inês Pedrosa ,  Os Íntimos,  publicado pela Editora Objetiva,  a fala masculina conduz o romance nas vozes dos cinco amigos. O médico oncologista Afonso e seus colegas de infância Augusto, Guilherme, Felipe e Pedro. No centro de cada narrativa partilhada entre eles, a vida sexual e afetiva de cada um.“`As vezes acho que nenhum de nós está a ouvir os outros, e invade-me uma sensação de felicidade. Ninguém é obrigado a ouvir ninguém.   Nem a falar”, ou  “Os homens não se ofendem com o alheamento dos amigos. Não fazem perguntas íntimas”.  
Assim, salpicado de aforismos que evidenciam as diferenças do masculino e do feminino,  Inês  acaba por lembrar  num longo esboço (apenas na temática, é claro) o baiano João Ubaldo Ribeiro em seu romance A Casa dos Budas Ditosos, publicado em 1999  também pela Objetiva. O livro de Ubaldo  é narrado por uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia,  que fala da sua própria vida e das infinitas possibilidades do sexo. Na verdade  o texto revela um Ubaldo que fala das mulheres e de sua percepção sobre elas . Em resumo, uma mulher ideal, aquela mulher que o homem gostaria de ver,  a partir de sua própria imaginação .
Sem entrar no debate sobre o que há de cada autor nos personagens, em ambos os romances,  ou seja, tanto Ubaldo quanto Inês  espreitam  o gênero oposto dando voz a um narrador de outro sexo. No caso de Os Íntimos há momentos curiosos em que a autora deixa transparecer , em cada diálogo,  ou nas entrelinhas destes, como é que uma mulher (ela própria ) pensa que os homens pensam e olham  as mulheres. “Os homens não se propõem a  resolver-nos os problemas, para depois nos atirarem à cara os problemas que nos resolveram. Não nos culpam”...filosofa, num diálogo, a amiga de um dos narradores...E  prossegue, pontuando-o de deliciosas expressões lusitanas como alcatifas (tapete), palrador (tagarela) miúda (garota) ou resmonear (resmungar).   Afinal,  o português no Brasil e em Portugal é a prova maior de que nas diferenças se encontram  preciosas riquezas.
Talvez cansado de responder a infindáveis perguntas sobre a  sua inspiração e a origem do personagem de seu livro mais famoso, o romancista francês Gustave Flaubert disse certa vez: “Madame Bovary sou eu”.  E chocou seus interlocutores. Emma Bovary,  com seus devaneios eróticos,  surge em 1856, em uma época que era totalmente proibido às mulheres qualquer  indício de desejo e transgressão. E Flaubert, curiosamente,  revela que uma das figuras femininas mais famosas da literatura seria, de fato, uma criação masculina.
Lançado no início deste ano em Lisboa Os Íntimos chega ao Brasil num momento em que uma mulher eleita presidente da República reivindica ser chamada de “presidenta”. Talvez  para além da flexão de um artigo a diferença  que separa os mundos masculino e feminino seja apenas uma questão de olhar.
Inês Pedrosa explica que ao deixar toda a sua narrativa para as vozes masculinas tentou apenas entender por que há certos rituais que são exclusivos dos homens, como os encontros em estádios de futebol ou restaurantes.  E mais do que isto, Inês explica que tentou neste livro “ser mais ousada na escrita, polir as frases, tirar-lhes o verniz e escrever sobre sexo de uma forma tão clara e crua quanto possível.” E nisto, o discurso dos homens ajudou.

05/01/2011

O Feijão e o Sonho

foto de Barbara Novaes



Mara Bergamaschi

A posse das oito[1] novas ministras de Dilma foi didática e interessante. Apesar de protocolar, este tipo de evento é também simbólico – por isso mesmo, revelador. Até de condutas estereotipadas – mas reais. Numa primeira comparação entre o que disseram os homens-ministros e o que disseram as mulheres-ministras surge uma sutil diferença: os homens foram todos afirmativos, anunciando projetos, metas e cifras ambiciosas. Alguns penderam para a grandiloquência, repetindo o batido “nunca antes” do ex-presidente Lula. Assim, soubemos que “o Brasil será o primeiro país tropical desenvolvido da história". Promessa é denominador comum entre homens? Parece que sim.
E as ministras? Mais feijão do que sonho. A fala de Iriny Lopes resume o que sobressaiu nos discursos das novatas. “Sou mineira, chego devagar. Melhor deixar um legado muito importante do que sair fazendo barulho e não conseguir fazer nada." Elas não foram evasivas, tocaram nas questões centrais de sua área, mas sempre com uma visão prática e realista. Iriny, que terá a missão de defender as mulheres, afirmou essa meta a partir de um exemplo do cotidiano. “Como vamos colocar as mulheres para trabalhar e serem autônomas se os filhos continuarem como tarefa exclusivamente feminina?” Sobre o aborto, foi cautelosa: disse que nenhuma mulher pode ser obrigada a ter um filho, mas deixou uma eventual iniciativa de mudança da lei para o Congresso. Discurso moderado também adotou a ministra da Igualdade Racial, Luiza de Bairros. Defendeu as cotas, mas sem imposição.
Até a mais poderosa das ministras, a do Planejamento, Miriam Belchior – que chorou e prestou homenagem ao ex-marido Celso Daniel, assassinado em 2002 – optou pela modéstia. Ela poderia ter recheado seu discurso com os bilhões do PAC sob sua administração, mas preferiu a economia doméstica, considerada outro ponto forte das mulheres. “É possível gastar com qualidade, fazer mais com menos”, reafirmou Miriam. Tereza Campello (Desenvolvimento Social), que já cuidava, como secretária-executiva, do Bolsa-Família, foi a única a acenar com benesses: disse que aumentará logo o valor do benefício. Talvez por estar no ministério há tempos, exagerou na apologia de suas realizações. Por fim, também mencionou o marido, Paulo Pereira, ex-tesoureiro do PT, como parte da “geração de homens orgulhosos de suas mulheres“.
Quem também prometeu austeridade no orçamento foi a ministra da Pesca, Ideli Salvati. “É um ministério bíblico, de multiplicar os peixes. Vamos ter que fazer o milagre de fazer mais com menos", disse. Ex-senadora, candidata derrotada ao governo de Santa Catarina, Ideli foi o tom dissonante da posse. Habituada à defesa intransigente do governo Lula, ela continua, mesmo sob nova direção, beligerante: disse que há “ignorância” sobre seu ministério e mandou os críticos “pescar”.
Jogo aberto - “Continuar não é repetir”, ensinaria Anna de Holanda, citando ninguém menos do que a chefe Dilma Rousseff. Autora do discurso de posse mais inspirado, a ministra da Cultura trouxe ao palco outra característica feminina: o gosto de discutir a relação. Desta vez, com a cultura. Disse que não quer “a casa arrumada pela metade”, que seu coração “bate pelos criadores” e prometeu atuar segundo os binômios “suavidade e firmeza” e “delicadeza e ousadia”. E concluiu: “Até aqui as pessoas têm consumido mais eletrodomésticos e menos cultura. Precisamos fazer o casamento da ascensão social com a ascensão cultural.” Para isso, apelou ao Congresso que conclua a votação do vale-cultura – um crédito de R$ 50,00 para este tipo de consumo destinado a trabalhadores que ganhem até cinco salários mínimos.
Coube à ministra de voz mansa, a deputada Maria do Rosário (Direitos Humanos), fazer a cobrança política mais contundente. Ela pediu ao Congresso que seja aprovada a criação da Comissão da Verdade sobre a ditadura, em tramitação desde maio passado. A comissão deve esclarecer os casos e identificar a autoria de torturas, mortes, desaparecimentos, ocultação de cadáveres. O assunto, que se relaciona diretamente com o passado da nova presidente, continua polêmico:o novo ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, já discordou. Na posse, disse que o “Brasil não deve olhar para trás”, pois isso seria “perda de tempo e não levaria a nada”.
No balanço geral, predominaram os ares da conciliação, exaltada pela presidente ao assumir o cargo. Isso foi percebido numa área que tem sido, segundo seus próprios interlocutores, “excepcionalmente tensa”: a comunicação do governo com a imprensa. Classificada como “jeitosa” por seu antecessor Franklin Martins, enquanto ele seria considerado “grosso”, a nova ministra, Helena Chagas, chegou avisando que não se discute liberdade de imprensa porque ela não está em questão. A pasta de Helena Chagas será certamente o termômetro da distensão.




[1] A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, foi reempossada: não houve, portanto, transmissão de cargo

02/01/2011

Retalhos do Cotidiano Feminino


A escritora canadense Alice Munro


Elza Pires de Campos
(publicado no Correio Braziliense em 01/01/2011)

As tragédias do cotidiano são como retalhos nos dez contos do mais recente livro da canadense Alice Munro; cada trapo, uma  vida pendurada no tempo; uma costura delicada a exigir paciência.
Seja nas montanhas cobertas de neve do inverno canadense ou nas falésias e piqueniques de verão, as personagens femininas ocupam todo espaço. Em vidas que se revelam, em alguns casos, apenas no intervalo de um soluço. Histórias curtas e rápidas, dentro de um rigoroso recorte. Aos 79 anos, Alice Munro  foi vencedora, no ano passado, do Prêmio Booker, um dos mais importantes  prêmios literários atribuídos anualmente a escritores de língua inglesa. Ao lado da também  canadense Margareth Atwood, Alice é considerada um dos expoentes da literatura daquele país do extremo norte-americano, uma especialista no gênero conto.
 Suas heroínas gravitam num universo tão comum que pode até confundir o leitor, pela simplicidade, pelo inusitado ou simplesmente pelo estranhamento dos detalhes. Mulheres ainda  jovens e outras já no final da existência, saudáveis, doentes, apaixonadas, viúvas solitárias, esposas traídas, comerciantes e serventes. Alguns contos podem se resumir em apenas uma frase: “eu cresci e  hoje estou velha...” .
         Na narrativa de Alice os tempos se misturam.  Talvez com o único objetivo de mostrar a alma das personagens.  O que leva o leitor a descobrir sempre uma  outra mulher por trás daquela que se apresenta,  como se fosse a sua irmã gêmea emocional.  As tragédias surgem nas filigranas cotidianas das inúmeras dificuldades do universo feminino. Aí está o segredo das maravilhas não reveladas por Alice.
Como a surpreendente senhora Nita, do conto “Radicais Livres”. Recém curada de um câncer, ela perde o marido, vítima de um infarto. Viúva,  mergulha na inércia do dia a dia, em uma casa cheia de pequenas lembranças que compõem sua solidão.  Tenta sobreviver até que um dia, totalmente distraída, abre a porta para um homem que ela pensava ter vindo verificar um relógio de luz.
Na verdade, ele era um assassino em fuga que acabara de matar toda uma família. O diálogo entre os dois é totalmente inusitado. Ela lhe oferece comida, ouve o seu relato e, como a Sherazade das Mil e Uma Noites, começa a contar histórias na tentativa de ganhar  tempo. Depois de vencer um câncer e ficar viúva, Nita percebe, na fração de alguns segundos e diante de um assassino, que ainda quer viver.
Assim como também tenta viver a jovem mãe que perde suas três crianças assassinadas pelo marido.  Em uma nova cidade, cabelos curtos, tingidos e espetados, um emprego de camareira em um hotel onde todos desconhecem seu passado, Doree trabalha, ocupa os pensamentos.  Das cicatrizes vai cuidando com auxílio da assistente social.
Nos outros contos há crianças perturbadas (como Kent, em “Buracos-profundos”),   bizarros predadores sexuais (“Wenlock Edge”) e narradores que rememoram e  descobrem  dentro de si,  quando ciranças, a capacidade de assassinato (“Charlene em Brincadeira de Criança”).
As flutuações do desejo feminino e as relações de amor e amizade também estão presente no último conto que dá nome ao livro, “Felicidade Demais”. Aqui Alice faz um recorte nos últimos momentos de  vida  de Sophia Kovalevsky, a primeira mulher a se tornar professora universitária de matemática na Suécia no final do século XIX.
Sophia nasceu na Russia, atuou como jornalista em São Petesburgo, se consagrou na Alemanha como romancista e matemática, militou politicamente na Comuna de Paris  e conviveu com várias personalidades da época.  Alice Munro ressalta suas habilidades, revela o fervor dos exercícios matemáticos que se misturam com uma ebulição de idéias literárias.  Como em vários personagens que habitam o mundo de Alice, e ela mesma reconhece, há  também neste conto material para um romance. Que ela, habilmente, resume em menos de vinte páginas.


(Felicidade Demais  -Alice Munro
  Companhia das Letras -339 pgs)