21/09/2011

No caminho de Rilke


ORPHEU E EURIDICE
Um dia li este poema na madrugada. E consegui enxergar algo que antes não via:   esta distância tão pequena de dois mundos: dos vivos e dos mortos. A surpresa reveladora de Eurídice. Ela já estava em outro mundo....

ORPHEU.EURIDICE.HERMES

Eram as minas ásperas das almas.
Como veios de prata caminhavam
Silentes pela treva. Das raízes
Brotava o sangue que parece aos vivos,
Na treva, duro como pórfiro. Depois
Nada mais foi vermelho

Somente rochas,
Bosques imateriais. Pontes sobre o vazio
E o lago imenso, cinza e cego,
Que sobre o fundo jaz, distante, como
Um céu de chuva sobre uma paisagem
Por entre os prados, suave, em plena calma
Deitado, como longa veia branca,
Via-se o risco pálido da estrada

Desta única via vinham eles.

`A frente o homem com o manto azul,
esguio, olhar em alvo, mudo, inquieto.
Sem mastigar, seu passo devorava a estrada
Em grandes tragos; suas mãos pendiam
Rígidas, graves, das dobras das vestes
E não sabiam mais da leve lira
Que brotava da ilharga como um feixe
De rosas entre ramos de oliveira.
Seus sentidos estavam em discórdia:
O olhar corria adiante como um cão,
Voltava, presto, e logo andava longe,
Parando, alerta, na primeira curva,
Mas o ouvido estava como um faro.
`As vezes parecia-lhe sentir
a lenta caminhada dos dois outros
que o acompanhavam pela mesma senda,
mas só restava o eco dos seus passos
a subir e do vento no seu manto.
A si mesmo dizia que eles vinham
Gritava, ouvindo a voz esmorecer
Eles vinham, os dois, vinham atrás,
Em tardo caminhar. Se ele pudesse
 voltar-se uma só vez (contemplá-los
não fosse o fim de todo empreendimento
nunca antes intentado) então veria
as duas sombras a seguir silentes:

O deus das longas rotas e mensagens,
Capacete sobre os olhos claros,
O fino caduceu diante do corpo,
Um palpitar de asas junto aos pés
E, confiada à mão esquerda: ela
A mais amada, essa por quem a lira
Chorou mais que o chorar das carpideiras,
Por qum se ergueu um mundo de chorar,
Um mundo com florestas e com vales,
Estradas, povos, campos rios, feras:
Um mundo-pranto tendo como o outro
Um sol e um céu calado com seus astros,
Um céu-pranto de estrelas desconformes –
A mais amada.

Ia guiada pela mão do Deus,
O andar tolhido pelas longas vestes,
Incerto, tímido, sem pressa.
Ia dentro de si,como esperança
E não pensava no homem que ia `a frente,
Nem no caminho que subia aos vivos.
Ia dentro de si. E o dom da morte
Dava-lhe plenitude.
Como um fruto em doçura e escuridão,
Estava plena em sua grande morte,
Tão nova que não tinha entendimento

Entrara em uma nova adolescência
Inviolada. Seu sexo se fechava
Como flor em botão no entardecer
E suas mãos estavam tão distantes
De enlaçar outro ser que mesmo o toque
Levíssimo, do guia, o Deus ligeiro,
A magoava por nímia intimidade.
Não era mais a jovem resplendente
Que ecoava nos cantos do poeta,
Nem o aroma do leito do casal
Nem ilha e propriedade de um só homem.

Estava solta como os seus cabelos,
Liberta como a chuva quando cai,
Exposta como farta provisão

Agora era raiz.

E quanto enfim o deus
a deteve e com voz cheia de dor,
disse as palavras: “Ele se voltou “–
ela não compreendeu e disse: “Quem?”

Mas pouco além, sombrio, frente `a clara
Saída se postava alguém, o rosto
Já não reconhecível. Esse viu
Em meio ao risco brando do caminho
O deus das rotas, com olhar tristonho,
Volver-se, mudo, e acompanhar o vulto
Que retornava pela mesma via,
O andar tolhido pelas longas vestes,
Incerto, tímido, sem pressa.

Autor: Rainer Maria Rilke 
tradução de Augusto de Campos