22/11/2009

Entre fincas e bolas de gude


Meu irmão tinha nos últimos tempos um sorriso triste e um olhar cansado por trás dos óculos usados por causa da presbiopia.  Planejava  pescar em algum lugar. Vivia na simplicidade total,  acalentando  projetos assim. Mudanças para a beira de um rio qualquer, viagem  sempre adiada por falta de tempo,  de grana ou até de companhia. Criava muitas tilápias nos dois lagos da sua chácara, distante 11 quilômetros do centro de Goiânia. Alimentava-as diariamente. Mas não gostava que pescassem em suas próprias águas.Tinha  amor a seus peixinhos.. estavam sempre lá. Intocáveis. Aos 55 anos ficara quase que completamente careca.  Ele que na década de 70, um adolescente, exibia  fartos cachos, sósias dos caracóis de Caetano Veloso. A magreza, as calças de couro e os óculos modelo raybans, além da rebeldia da época, imitavam Raul Seixas, um dos seus ídolos.
                Foi tudo tão rápido que a gente não consegue ainda acreditar. Os arregalados olhos azuis do meu primo João Bosco a descrever  os últimos momentos. Ele que o acompanhou ao hospital junto com  Diana, sua esposa, que também esteve com ele até o final. Primeiro disseram que  não era gripe, ele estava com dengue. Retiraram os antibióticos. Mandaram-no de volta para casa.Continuou com febre alta  no final de semana anterior ao feriado de sete de setembro.  No feriado foi novamente hospitalizado já muito mal. A suposta dengue virou uma bronco-pneumonia aguda. Foi parar na UTI. E morreu no dia 17 de setembro sem que lhe tivessem dado qualquer dose do polêmico Tamiflu. Um remédio que existe mas não se compra em farmácia.Não houve tempo  para o diagnóstico.
Aliás, a família nem buscou o papel comprovando diagnóstico da gripe suína. De que adianta saber algo agora? Meu irmão  se transformou em uma estatística para colorir os relatórios que justificam o salário de  algum iluminado ativista do Ministério da Saúde. Um número a mais.  A ser citado às vésperas das próximas eleições  ou que irá animar um debate televisivo entre candidatos.
No dia 16 de setembro, enquanto Rogério  ( que a gente chamava de Roge) paralisava os rins na UTI   eu,  do celular, falava com a enfermeira-chefe do Hospital Samaritano de Goiânia ouvindo dela que seu estado era gravíssimo.  Ainda sob o impacto da notícia liguei o rádio do carro, pois voltava do trabalho para casa . Era a transmissão da Hora do Brasil, pela radiobrás.  Ao som do estilizado Guarani, em cadeia nacional, um ministro chamado José Gomes Temporão, da Saúde, dava entrevista e  garantia que a gripe suína estava totalmente sob controle em todo o País. Ele ainda tranqüilizava a população informando que o remédio,  o Tamiflu, estava disponível para todos os hospitais em todos os Estados.E apontava para números e estatística. Percentuais dos Estados, etc , etc, etc....  o discurso que todos nós conhecemos. Tive vontade de dizer um monte de coisas ao ministro. E que Deus me perdoe por ter pensado, naquele momento, se esta autoridade nacional  já tivera algum parente na mesma situação do meu irmão.... Mas nem preciso perguntar isto a ninguém porque, tenho certeza  que  o  Sr.ministro não tem nenhum parente  com  o fatídico vírus da Influenza H1N1. Porque, se ele tivesse, não falaria de forma tão segura e imponente, naquele dia , em cadeia nacional de rádio.
Na transparência do vidro azul e verde
Poderia aqui usar mil metáforas para contar a este  ministro como dói perder um irmão. Junto com ele se vai parte da nossa infância.Poderia lembrar Guimarães Rosas e me acalentar pensando que “as lembranças ( e as saudades) são outras distâncias”. Mas, sem receios ou medo de me tornar ridícula,  prefiro a imagem daquela  bola-de-gude  que encontrei  ,  caída na rua, enquanto fazia minha caminhada matinal. Alguém ainda brinca com bolas-de- gude?  E  com Finca?   Finca era objeto pontiagudo de ferro que a gente literalmente fincava no chão de terra vermelha num traçado irregular de triângulos, retângulos e losangos além de  inúmeras outras formas mais. Cada  tamanho  valia uma quantidade de pontos.
Meu irmão Rogério foi, sem dúvida alguma, o melhor jogador de bolas-de-gude que eu conheci.  E de finca também. Ele, que jamais buscou sucesso na vida. Gostava de viver assim, do espontâneo e  do natural. Gostava  de pescar. Buscava ser feliz dentro da simplicidade de um jogo de finca ou de bolas-de-gude. Dois folguedos da nossa infância que, junto com ele, desaparecem  do mapa..
Nestes dois jogos, sempre foi Invencível. Participou de inúmeros campeonatos,  desafiou todos os moleques, gangues e até os grandes das imediações da rua 12, no centro de Goiânia, onde moramos por tantos anos e onde ele ainda mantinha uma garagem no lote da nossa casa,  que foi demolida. Apostávamos trocados  naqueles campeonatos. Havia dias para finca e dias para bolas-de-gude. Ele tinha várias caixas de sapato onde guardava o seu arsenal bélico. Quem apostava nele na certa não perdia dinheiro. Nos bolsos  sujos  de garoto colecionava notas gastas . Os trocados, fruto das apostas.
As bolas-de-gude têm uma  marca singular. Nunca se sabe se são verdes ou azuis. Translúcidas ou leitosas elas mantêm as duas cores ao mesmo tempo. Jogávamos  perto dos bueiros, nos vãos das calçadas com a rua. Lugar destinado a escoar a água da chuva. Roge era tão exímio que suas bolinhas jamais rolavam para os bueiros imundos. Fazia-as girar nos dedos ágeis. E acertava a finca no lugar certo  com a maior precisão.
 Meu irmão  levou para sua  vida adulta de forma intacta todo nosso cenário de fincas e bolas-de-gude.  Daqueles tempos  em que na Avenida Tocantis  haviam  muitas casas e fileiras de “flamboyens” que  anualmente  derrubavam no chão os bagos compridos de sementes que a gente transformava... simplesmente.... em espadas. Havia o sobradão  da minha avó, um roseira  sempre florida, com nossos umbigos na raiz plantados e as três jambocheiras (que continuam lá) cujas flores formava no chão um imenso  tapete vermelho-rosado  pisados por nossos pés descalços.
Roge quardava, embaixo de sua cama, eu sabia,  a caixa de sapatos  com as tais bolinhas. que ele acumulava pacientemente.  Havia  também ali caixas de fósforos  usadas  recheadas com vagalumes. E a arma secreta para  os incautos , como eu, que se aventurassem a remexer em suas coisas: as enormes e terríveis formigas cabo-verde, ainda bem vivas  porque alimentadas  cotidianamente com folhas.  Sempre atentas  com seus ferrões apontados para o curioso imprudente.  E ainda uma dezena de retorcidas guimbas de cigarro que ele catava nos cinzeiros do escritório do nosso pai. Estes eram seus tesouros. Uma  singular riqueza  acumulada, mais valiosa do que dinheiro ou jóias.
Agora que ele se foi de forma estúpida,  vejo como estamos todos envelhecendo.  Fico assim, de frente para o passado. Diante da minha cara de espanto,  se desenrola uma película destas imagens fortes, e,talvez, poucos entendam.

Elza Pires de Campos
Novembro de 2009

11/11/2009

Uma sugestão de livro

27/12/2008 - Fonte: Correio Braziliense
Pelo olhar de Ugwu

Elza Pires Especial para o Correio 
Quando a África decide contar a própria história, o mundo pode, enfim, vê-la com outros olhos. Curiosamente, é com a velha receita de uma história de amor, temperada pelo idealismo de um grupo de intelectuais africanos sonhadores, que a jovem escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie constrói seu premiado romance, Meio sol amarelo, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. O livro ganhou o prêmio Orange, na Inglaterra, no ano passado. Sua autora tinha 31 anos na época. O cenário é a Nigéria. A história, baseada em fatos reais, acontece no início e no fim da década de 1960. No mesmo período em que, no sudeste da Nigéria, grupos da etnia Ibo — que se opunha aos iorubas e outras etnias rivais — decide fundar o território livre de Biafra.

Chimamanda surpreende pela simplicidade. Seu olhar é para o ser humano, personagem central do romance. A partir desse viés, surge, naturalmente, o contexto político e econômico, dentro de uma África e de uma Nigéria que ainda hoje abrigam os mesmos conflitos, a mesma violência, a doença e a fome. Chimamanda conta uma história. Cabe ao leitor preencher o vazio que fica e buscar as informações. Afinal, o cenário dessa história — a guerra — foi bastante divulgado. Quem não se lembra das crianças esquálidas, pele e osso, barrigas enormes e olhos esbugalhados estampadas nos jornais do mundo? As crianças de Biafra.

O resgate histórico fica por conta do leitor. E talvez aí se encontre parte da surpresa desse romance, que se inicia de forma despretensiosa e cresce em dramaticidade à medida que se descortinam a guerra e os inevitáveis dramas humanos que a ela se seguem. Cabeças que voam, crianças doentes, livros queimados, seres destroçados, mulheres estupradas por soldados e levas de populações famintas. O drama humano de Biafra despertou o mundo, na década de 1960, para a ajuda humanitária dos médicos sem fronteiras e de outras organizações. Houve um momento em que até a Cruz Vermelha era bombardeada pelos soldados nigerianos. Mas Chimamanda não fala do contexto. Ela prefere contar história.

Lagos, no começo dos anos 1960. O futuro sorri para duas irmãs gêmeas. A bela Olanna se apaixona por Odenigbo, intelectual engajado e idealista. Sua irmã Kainene, meio sarcástica, alimenta uma relação com Richard, um jornalista inglês apaixonado pela cultura dos Ibos. Entre esses quatro personagens, o olhar intrigado do jovem Ugwu, de 13 anos, talvez o personagem mais singular e doce do romance. Ugwu quer aprender tudo. Devora livros na casa do patrão. Ele vem de um grupo dos Ibos, uma aldeia não muito distante da universidade, para trabalhar como empregado do professor.

O olhar de Ugwu passeia pelo romance como um mensageiro entre esses dois mundos. E, a cada final de capítulo, um pequeno resumo se revela no esboço de uma história escrita pelo garoto. O pano de fundo é a guerra que, no começo do livro, nem mesmo é cogitada, mas que avança dolorosa e impune até as últimas páginas. Ugwu nada sabe sobre a guerra. E sua inocência pontua cada pedaço do livro. Desde a surpresa ao conhecer um fogão e uma geladeira ao medo de não entender o inglês “bonito” falado pelo patrão e pela patroa. Ele tem ainda a compreensão de que a mãe do patrão lança sobre o casal estranhas energias vindas de sua aldeia, além de comidas que trazem má sorte.

Ugwu conduz o leitor a seu mundo e passeia com ele no mundo daqueles adultos que bebem, dão risada e pensam em criar um novo país. Diferente da Nigéria que, como Ugwu, foi, aos poucos, se aculturando. Como o foi a Nigéria tomada pelos ingleses que dominaram as centenas de etnias. Essa parte da Nigéria que se transforma em Biafra. Um pequeno país que durou três anos. Tempo suficiente para sonhar e até para ter o próprio hino, sua pequena história tão triste e tão recente, seus sonhos e sua bandeira: o desenho de um meio sol amarelo que deveria significar um novo dia.

No gigantesco quebra-cabeças dos continentes, o golfo de Biafra, cujo nome foi mudado na tentativa de apagar a história — hoje se chama Golfo de Bonny —, tem a mesma forma da costa nordestina brasileira. É como se um dia, num passado qualquer, a costa africana formada por Nigéria, Camarões e Gabão, tivesse sido colada ao Brasil. Hoje, entre eles, há mais que a imensidão do Atlântico. Há diferenças. A maior delas, o destino dos povos.

Elza Pires de Campos é jornalista, pós-graduada pelo Institut d’Étude du Developpement Économique et Social (Iedes –Paris I), Sorbonne

MEIO SOL AMARELO De Chimamanda Ngozi Adichie, tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 504 páginas. R$ 55.


Anis Estrelado

Os chineses o utilizam para temperar carnes e frutos do mar. Não é plantado comercialmente no Brasil, e é a base para o fármaco Tamiflu, atualmente utilizado para combater a gripe suína. Originário do Sul da China, é cultivado em zonas quentes e úmidas do continente americano. É uma árvore da família das Magnoliáceas, que atinge de 2 a 5 metros de altura. A sua casca é branca e as folhas perenes e lanceoladas.