Carteira de estudante de Romeu Pires de Campos Barros -1936 |
O erre do meu pai era especial. Uma capitular inscrita para sempre nos meus olhos infantis....quando
assinava a letra inicial de seu
nome, em cheques, documentos e outros papéis, ele o fazia em um gesto largo, sempre com uma
caneta-tinteiro, e de ouro.
Primeiro desenhava,
pacientemente, o primeiro esboço da letra, um traço horizontal e displicente.
De cima pra baixo como um rabisco qualquer.Depois vinha com um semi-círculo em
cima do traço e espichava, caprichoso, um longo rabicho que terminava como um
arredondado para cima da primeira letra do seu nome. Erre, de Romeu.
A forma da maiúscula era bem antiga, tempo da escrita desenhada que se esconde na noite dos séculos...
A forma da maiúscula era bem antiga, tempo da escrita desenhada que se esconde na noite dos séculos...
Precisava de espaço
na página. Em talões de cheque, seu erre sempre terminava no final da folha, no
cantinho. Um caractere desenhado. Que jamais poderia ser confundido com
um outro erre qualquer.
Um erre de quem jamais
errava.
Havia mesmo um
ritual. Primeiro ele se concentrava.
Ficava muito sério, quase solene... Verificava se havia tinta na caneta.
Preparava ao lado aquela almofadinha verde ou marrom em formato arredondado que
se chamava mata-borrão. (Isso nem existe hoje mais, só em antiquários...).
Alguns gestos do meu
pai duram cem anos...
Muitas vezes eu
buscava no correio, na caixa postal, as revistas italianas que ele recebia. Vinham embrulhadas em um papel marrom claro. Ele
as abria, uma a uma, e, na segunda ou terceira página, escrevia seu nome. Que ocupava toda página. Na diagonal.
Depois, ainda com
muita calma, tirava da gaveta de sua escravaninha uma espécie de punhal com
cabo de prata. A espátula.Um corta-folhas porque as revisitas vinham coladas. Era uma peça lindíssima, uma quase-faca destinada apenas a
cortar papel. Mas, como tudo ali, naquele espaço sagrado, o escritório, não podíamos
tocar. Só olhar... de longe... admirar... cobiçar..
Com esta peça ele abria cada maço de
folhas das revistas que vinham dobradas e inteiras. Era preciso abrir com
esta espátula cada uma das páginas. Ficavam pelo
chão as migalhas daquele papel chique, espesso, meio amarelado, que tinha cheiro de
novo.
A caneta de ouro era um outro fetiche....O modelo bem
parecido com uma destas esferográficas qualquer. Um objeto pesado. Nas poucas vezes em que estive
com ela nas mãos senti a responsabilidade. Eu
pensava que um dia teria uma igual... e que era difícil escrever solenemente..o dedo anular se esforçando para arredondar cada letra.