12/12/2012

A primeira letra - Capitular


Carteira de estudante de Romeu Pires de Campos Barros -1936

O erre do meu pai era especial. Uma capitular inscrita para sempre nos meus olhos infantis....quando assinava a letra inicial de  seu nome, em cheques, documentos e outros papéis, ele o fazia  em um gesto largo, sempre com uma caneta-tinteiro,  e de ouro.
Primeiro desenhava, pacientemente, o primeiro esboço da letra, um traço horizontal e displicente. De cima pra baixo como um rabisco qualquer.Depois vinha com um semi-círculo em cima do traço e espichava, caprichoso, um longo rabicho que terminava como um arredondado para cima da primeira letra do seu nome. Erre, de Romeu.
A forma da maiúscula era bem antiga,  tempo da escrita desenhada  que se esconde na noite dos séculos...
Precisava de espaço na página. Em talões de cheque, seu erre sempre terminava no final da folha, no cantinho. Um caractere  desenhado. Que jamais poderia ser confundido com um outro erre qualquer.
Um erre de quem jamais errava.
Havia mesmo um ritual. Primeiro ele se concentrava. Ficava muito sério, quase solene... Verificava se havia tinta na caneta. Preparava ao lado aquela almofadinha verde ou marrom em formato arredondado que se chamava mata-borrão. (Isso nem existe hoje mais, só em antiquários...).
Alguns gestos do meu pai duram cem anos...
Muitas vezes eu buscava no correio, na caixa postal, as revistas italianas que ele recebia. Vinham embrulhadas em um papel marrom claro. Ele as abria, uma a uma, e, na segunda ou terceira página, escrevia seu nome. Que ocupava toda página. Na diagonal.
Depois, ainda com muita calma, tirava da gaveta de sua escravaninha uma espécie de punhal com cabo de prata. A espátula.Um corta-folhas porque as revisitas vinham  coladas. Era uma peça lindíssima, uma quase-faca destinada apenas a cortar papel. Mas, como  tudo ali, naquele espaço sagrado,  o escritório, não podíamos tocar. Só olhar... de longe... admirar... cobiçar..
 Com esta peça ele abria cada maço de folhas das revistas que vinham dobradas e inteiras. Era preciso abrir  com esta espátula cada uma das páginas. Ficavam pelo chão as migalhas daquele papel chique, espesso, meio amarelado, que tinha cheiro de novo.
A caneta de ouro era um outro fetiche....O modelo  bem parecido com uma destas esferográficas qualquer.  Um objeto  pesado. Nas poucas vezes em que estive com  ela nas mãos senti a responsabilidade. Eu pensava que um dia teria uma igual... e que era difícil escrever solenemente..o dedo anular se esforçando para arredondar cada letra.