02/01/2011

Retalhos do Cotidiano Feminino


A escritora canadense Alice Munro


Elza Pires de Campos
(publicado no Correio Braziliense em 01/01/2011)

As tragédias do cotidiano são como retalhos nos dez contos do mais recente livro da canadense Alice Munro; cada trapo, uma  vida pendurada no tempo; uma costura delicada a exigir paciência.
Seja nas montanhas cobertas de neve do inverno canadense ou nas falésias e piqueniques de verão, as personagens femininas ocupam todo espaço. Em vidas que se revelam, em alguns casos, apenas no intervalo de um soluço. Histórias curtas e rápidas, dentro de um rigoroso recorte. Aos 79 anos, Alice Munro  foi vencedora, no ano passado, do Prêmio Booker, um dos mais importantes  prêmios literários atribuídos anualmente a escritores de língua inglesa. Ao lado da também  canadense Margareth Atwood, Alice é considerada um dos expoentes da literatura daquele país do extremo norte-americano, uma especialista no gênero conto.
 Suas heroínas gravitam num universo tão comum que pode até confundir o leitor, pela simplicidade, pelo inusitado ou simplesmente pelo estranhamento dos detalhes. Mulheres ainda  jovens e outras já no final da existência, saudáveis, doentes, apaixonadas, viúvas solitárias, esposas traídas, comerciantes e serventes. Alguns contos podem se resumir em apenas uma frase: “eu cresci e  hoje estou velha...” .
         Na narrativa de Alice os tempos se misturam.  Talvez com o único objetivo de mostrar a alma das personagens.  O que leva o leitor a descobrir sempre uma  outra mulher por trás daquela que se apresenta,  como se fosse a sua irmã gêmea emocional.  As tragédias surgem nas filigranas cotidianas das inúmeras dificuldades do universo feminino. Aí está o segredo das maravilhas não reveladas por Alice.
Como a surpreendente senhora Nita, do conto “Radicais Livres”. Recém curada de um câncer, ela perde o marido, vítima de um infarto. Viúva,  mergulha na inércia do dia a dia, em uma casa cheia de pequenas lembranças que compõem sua solidão.  Tenta sobreviver até que um dia, totalmente distraída, abre a porta para um homem que ela pensava ter vindo verificar um relógio de luz.
Na verdade, ele era um assassino em fuga que acabara de matar toda uma família. O diálogo entre os dois é totalmente inusitado. Ela lhe oferece comida, ouve o seu relato e, como a Sherazade das Mil e Uma Noites, começa a contar histórias na tentativa de ganhar  tempo. Depois de vencer um câncer e ficar viúva, Nita percebe, na fração de alguns segundos e diante de um assassino, que ainda quer viver.
Assim como também tenta viver a jovem mãe que perde suas três crianças assassinadas pelo marido.  Em uma nova cidade, cabelos curtos, tingidos e espetados, um emprego de camareira em um hotel onde todos desconhecem seu passado, Doree trabalha, ocupa os pensamentos.  Das cicatrizes vai cuidando com auxílio da assistente social.
Nos outros contos há crianças perturbadas (como Kent, em “Buracos-profundos”),   bizarros predadores sexuais (“Wenlock Edge”) e narradores que rememoram e  descobrem  dentro de si,  quando ciranças, a capacidade de assassinato (“Charlene em Brincadeira de Criança”).
As flutuações do desejo feminino e as relações de amor e amizade também estão presente no último conto que dá nome ao livro, “Felicidade Demais”. Aqui Alice faz um recorte nos últimos momentos de  vida  de Sophia Kovalevsky, a primeira mulher a se tornar professora universitária de matemática na Suécia no final do século XIX.
Sophia nasceu na Russia, atuou como jornalista em São Petesburgo, se consagrou na Alemanha como romancista e matemática, militou politicamente na Comuna de Paris  e conviveu com várias personalidades da época.  Alice Munro ressalta suas habilidades, revela o fervor dos exercícios matemáticos que se misturam com uma ebulição de idéias literárias.  Como em vários personagens que habitam o mundo de Alice, e ela mesma reconhece, há  também neste conto material para um romance. Que ela, habilmente, resume em menos de vinte páginas.


(Felicidade Demais  -Alice Munro
  Companhia das Letras -339 pgs)



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