31/03/2014



Speak Memory





No dia 31 de março de 1964 eu e meus quatro irmãos -- idades que variavam  entre  três e dez anos -- estávamos escondidos embaixo da cama dos nossos pais. Lembro-me bem do estrado em madeira preso por dobradiças e algumas teias de aranha salpicadas entre as vigas. As  flores desbotadas do lençol que nos cobria e o cheiro de mofo que vinha do velho colchão do casal. Um frio na barriga e arrepios pelo corpo. 
 Obedecíamos a uma ordem estrita de não sair dali.  Nosso choro se misturava ao som dos vôos razantes de aviões militares. Era a guerra. Morávamos a duas ruas do Palácio das Esmeraldas. Minha mãe havia nos escondido naquele local, minutos depois de saber do golpe quando os aviões começaram a surgiu no céu da cidade. Goiânia, naquela época, era uma pacata cidade de interior. Com pracinha e coreto. 
 Minha mãe nos trancara no seu quarto sem qualquer explicação. Dizia apenas que era para o nosso bem. Dava para perceber que havia algo terrível no ar. Lembro da frase que ela repetia ao telefone - Ah! o telefone era enorme, um modelo preto fixado na parede  bem ao lado do quarto.  Ela dizia com a voz entrecortada “Jango foi deposto”. Eu não entendia nada. Nem sabia o que significava a palavra “deposto”... Imaginava algo como um posto de gasolina. Ela, a minha mãe, estava mais do que apavorada. Estava em pânico.  Mesmo no forte calor que fazia na nossa região nesta época do ano, minha mãe estava de casaco, meias de lã  e ainda se protegia com um xale de crochê vermelho. Ela sentia muito frio. Era comum, durante a vida toda, ela começar a tremer de frio quando estava com medo ou sentia que seus filhos estavam ameaçados.
 No dia do golpe, depois fui entender, os militares ameaçaram invadir o Palácio das Esmeraldas para depor o governador Mauro Borges. Uma multidão tomou as ruas,  ocupou a Praça Cívica em frente ao Palácio e o governador, que era aliado do Brizola e também do Jango, e iniciara uma luta pela legalidade, deixou sua residência nos braços do povo. Enquanto dentro do quarto o clima era de pânico, lá fora, na praça, o que aconteceu foi um ato político e cívico contra o golpe. Um golpe que, afinal, durou vinte anos e significou, praticamente, toda a adolescência daquela turminha apinhada sob a cama.
 Mas minha mãe, que tinha dez filhos, só pensava nos riscos e tinha medo que, vendo a multidão, fugíssemos todos para a Praça Cívica, em clima de festa.  Aliás,  aquela praça funcionava, para nós como uma espécie de parquinho. Todas as tardes os mais velhos seguravam nas mãos dos pequenos e  brincávamos no coreto. 
Além de nos trancar no quarto ela tentava controlar os outros filhos maiores, naquele dia  todos na rua. Minha irmã mais velha, já casada, estava na praça com o marido --  um jovem juiz que viera de sua comarca próxima  de Goiânia para homenagear o governador e protestar contra o golpe. O irmão mais velho tinha dezoito anos e prestava serviço militar. Naquele dia ele não voltou para casa. Vi depois minha mãe ao lado do rádio, rezando e chorando. Meu irmão fora obrigado a ficar “de prontidão” no quartel.  Outra  palavra que aprendi  naquele dia foi esta : “prontidão”.  Minha mãe repetia o  tempo todo. “Imagina, o Junior está de prontidão há mais de uma semana, eles lá não dormem, ficam de guarda com fuzil na mão, o que ele deve estar comendo naquele quartel? e se  estourar a revolução?” E se lamentava, triste, batia o queixo de frio, lábios sem cor, olheiras profundas. “Fiquem todos em casa, agora”. Ninguém sai mais,  e,  se seu pai tiver juízo a gente arruma as malas e sai da cidade”, ela dizia. E já começava esvaziar as gavetas. Só que o meu pai, para desespero dela, também estava na praça,  protestando “totalmente sem juízo”.
Embaixo da cama eu imaginava o que ocorria na praça. Pelo relato dela, haveria “derramamento de sangue”. Nesta hora eu e meus irmãos rezávamos e eu chorava muito porque via um rio de sangue escorrendo pela Praça Cívica, muita gente se contorcendo ou já morta com o tal “derramamento” e a nossa velha e querida fonte iluminada da praça, sempre tão bucólica,  totalmente vermelha. Com o sangue derramado. 

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