28/12/2010

Bibliotecas da Colômbia, exemplos para o Brasil





Enviado por Mara Bergamaschi*, de Bogotá,
Publicado em O GLOBO - 25.12.2010 | 09h15m


El Tunal é longe: há mais de uma hora passam favelas ao longo das duas pistas, mão e contramão, ao sul de Bogotá. De um lado, casas de tijolos claros, sem reboco, já não cabem na planície: aproximam-se da cordilheira e misturam-se com ela, bordando o sopé da montanha com tons mais leves de marrom. Parecem esculpidas na terra, arqueológicas. Do outro lado, sem a muralha, construções espraiam-se a perder de vista. A tarde ainda está pelo meio, mas há pouca luz e faz frio. O céu está nublado, a garoa vai e vem. Penso que é pior viver ali, sob aquele insano equatorial-de-altitude, do que nas favelas do Rio: pelo menos no balneário tropical há sol, céu azul e, em alguns casos, até a vista esplêndida da baía e das praias. Em Bogotá, alternam-se, em fração de horas, calor-frio-secura-vento-chuva, com vantagem inequívoca, a 2.600 metros, para a friagem. Sob os Andes, o clima é rude para humanos, mas ótimo para plantas, que vicejam e florescem, como se cultivadas em estufas. De cima, do avião, os vales rurais da Colômbia não são verdes; são verdíssimos, de todos os matizes. Mas ali, onde se estende parte da imensa periferia urbana, ocupada por três dos oito milhões de habitantes da capital, quase não há mais vegetação. Quase: quando surge um espaçoso gramado com árvores esparsas, chegamos. Eis enfim a Biblioteca Pública Parque El Tunal, com seu grande rabo de baleia — escultura no espelho d’água da fachada que é também a logomarca da instituição.


Autores brasileiros são populares no país


Mal entramos e o diretor, de gravata, já está a postos para mostrar o local aos mais de 50 brasileiros, professores da rede pública, em sua maioria. Professoras, na verdade. Há somente meia dúzia de rapazes. O grupo está ali por ter se destacado com experiências inovadoras de leitura em suas escolas. Alguns projetos são mais do que criativos: Malvão, o único professor de 48 crianças e adolescentes de uma isolada comunidade caiçara de Paraty, instalou uma biblioteca num rancho de pesca, onde se guardam barcos e canoas. Todos os dias, ele pega um ônibus, uma van e um bote para dar aulas. Quando o mar encrespa, caminha por duas horas e meia pelas trilhas. Seus colegas enfrentam outras adversidades. Muitos trabalham em periferias semelhantes a que acabamos de atravessar. Outros têm mais sorte: dão aulas em escolas bem equipadas e localizadas. Mesmo esses nunca viram bibliotecas públicas como as da Colômbia. A espetacular Virgílio Barco, visitada no dia anterior, fez todos entenderem porque Bogotá, sede de um Estado convulsionado há décadas por combates entre guerrilheiros, paramilitares, narcotraficantes e soldados, foi declarada pela Unesco Capital Mundial dos Livros em 2007. Mesmo em guerra, a pátria de Gabriel García Márquez lê — atividade que talvez mais convide ao silêncio e à paz. E conhece bem a literatura infantojuvenil brasileira. Autores como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Ângela Lago, Nilma Lacerda, Bartolomeu Campos de Queirós, Marina Colasanti, traduzidos desde os anos 1980, são considerados fundamentais para a renovação do gênero na Colômbia. Roteiro melhor, ainda que exija um pouco de coragem, não poderia haver para os professores premiados pelo Concurso Escola de Leitores, organizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e Instituto C&A.

Na Bogotá vez por outra aterrorizada por carros-bombas, as bibliotecas estão vivas. Inclusive as localizadas nas áreas mais pobres e violentas. O diretor Róbinson Areliano que o diga. Versão mais modesta da nave-mãe Virgilio Barco, El Tunal, a terceira maior, por onde passam em média 4 mil pessoas por dia, tem excesso de demanda: recebe três vezes mais crianças do que comporta. Bayron Vargas tem dez anos e é frequentador assíduo. Com nome de poeta, segue seu destino, entre livros.

— Gosto das histórias, dos trabalhos, de tudo, por isso venho todo o dia — diz.

Para acomodar tanta gente, os 63 funcionários precisam reinventar o espaço.

— Nos fins de semana, montamos tendas e guarda-sóis no parque para pais e filhos — diz o diretor, também bibliotecário.

Róbinson, que deve estar na faixa dos 40, é igualzinho à maioria dos seus conterrâneos, mestiços de brancos e índios. Mas há algo diferente, que o faz se parecer mais com os brasileiros: ele é sorridente. De maneira geral, os bogotanos se mostram gentis, mas fechados. As mulheres, mesmo jovens, costumam ter um olhar assustado. É que quase todo mundo tem uma história brutal para contar, que vitimou gente distante ou próxima. Os períodos de trégua, como o vivido atualmente, parecem insuficientes para revogar o semblante sério. Que se repete, identifico agora, em todas as figuras redondas, supostamente divertidas, de Botero: no Museu, nenhum de seus retratos sorri, nem incognitamente (exceção aberta só mesmo na sua versão da Monalisa). O que o artista capturou de seu povo, que aliás nada tem de obeso, foi, deduzo, esse deficit de alegria. Anti-Botero total, magro e feliz, Róbinson defende que os livros ajudem a conduzir os niños ao mundo da imaginação e da fantasia.

— Não queremos oferecer o que já vivem nem recordar a dureza de seu ambiente — diz, nas salas decoradas com dragões feitos pelos estudantes.

“Então as crianças não vão falar de suas vivências?”, questiona na mesma hora a bibliotecária Silvia Castrillón, organizadora do périplo dos brasileiros. Envolvida há anos nos movimentos sociais pró-leitura, diz que El Tunal é o seu projeto favorito.

— Aqui, a comunidade está presente — justifica.

Mesmo assim não deixará passar em branco suas divergências. Ao contrário de Róbinson, Silvia não exalta o lúdico: considera a relação com os livros um prazer que se conquista com algum esforço, em todas as idades. Suas convicções, que agradaram os professores brasileiros, são firmes: não existe leitura sem debate e sem escrita. E não haverá aluno-leitor sem que haja antes professor-leitor. Engajada, a senhora grisalha, que já teve cargos estratégicos em governos e no mercado editorial, continua disposta a consertar tudo. Deplora a “moda das bibliotecas escolares” que não colocam a literatura, a palavra, no centro do trabalho. E critica a escola colombiana por não fazer frente aos problemas do país:

— Não falam da violência nem da guerra.

O feijão ou o sonho? Quem venceria a batalha em El Tunal, nos supostos domínios do reino encantado, seria a dura realidade. E de forma surpreendente. Alguém já imaginou se aproximar de painéis coloridos, com aplicações costuradas a mão, e ver cenas de assassinato e sequestro, cadáveres e sangue, crianças e mães em fuga, além de um povoado destruído por homens armados? A narrativa completa de um desplazamiento (êxodo forçado), imposto por paramilitares à comunidade de Mampuján, em 2000, foi registrada por 15 mulheres sobreviventes. Estima-se que 10% da população do país — mais de quatro milhões de pessoas — tenha sido desalojada pelos conflitos. A primeira reação àquela estética do paradoxo é o choque: como pode o horror ser mostrado com tanta delicadeza?

— Há algo de punk no ar — resume Patrícia Lacerda, especialista em educação, coordenadora do Concurso de Leitores.
Sua impressão seria reforçada pela leitura de títulos infantojuvenis de sucesso local. Em um deles, Chapeuzinho Vermelho simplesmente envenena o Lobo Mau com um caramelo. E diz no final: “como és inocente!”


Bibliotecas colombianas impressionaram Vargas Llosa

Hoje no comando da Asolectura, ONG que responde por 40 Clubes de Leitores, Silvia Castrillón conhece e acompanha o mercado contemporâneo. Mas sem perder jamais suas referências: é fã da pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que cita sempre. E de vários escritores brasileiros: muitos dos que são populares entre nossos hermanos foram editados e algumas vezes traduzidos por ela. Também levou e conseguiu implantar em seu país propostas — como o fundo das editoras em favor da leitura —, inconclusas há anos no Brasil. Nossa anfitriã em Bogotá tem, portanto, fortes e antigos laços conosco. A secretária-geral da FNLIJ, Beth Serra, é testemunha disso:

— É incrível, mas Silvia pegou ideias, levou e fez antes de nós.

Os esforços educacionais do país para elevar o status da literatura e popularizar os livros ganham cada vez mais visibilidade. Mesmo distante, a biblioteca El Tunal já consta dos roteiros turísticos internacionais e vem atraindo gente famosa. Róbinson, que está lá desde o começo, há nove anos, não nos conta, mas o escritor peruano Mario Vargas Llosa, que conquistou o Nobel de Literatura em 2010, esteve lá. Ficou tão impressionado que seu verbete sobre a Colômbia, no “Dicionário Amoroso da América Latina”, de 2005, é dedicado unicamente às bibliotecas de Bogotá. “São autênticos eixos da vida comunitária desses bairros humildes, onde vão as famílias em suas horas de lazer, porque nesses locais e ao seu redor, velhos, crianças e jovens se divertem, se informam, aprendem, sonham, melhoram e se sentem participantes de uma iniciativa comum”.

No gramado da biblioteca, meninos uniformizados empinam seus “cometas” coloridos contra o céu cinza. Aproveitam os bons ventos. Quando saímos, os pingos de chuva voltam a cair. As crianças correm. Se precisarem, o refúgio está bem ali. Em tempos de guerra e paz. 

* MARA BERGAMASCHI é jornalista e escritora

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