18/10/2010

O Acidente

Elza Pires de Campos - Publicado no Correio Braziliense 
Kadaré, autor de Abril despedaçado
A Albânia ou o abismo? Uma história de amor ou uma investigação policial? Ismail Kadaré edifica uma teia de inusitadas situações em seu último romance, O acidente. Habituado a revestir suas histórias de cenas políticas, Kadaré mantém o mesmo viés de denúncia de outras obras suas, mas parte desta vez de um fato banal. Pelo retrovisor de um táxi a imagem de um casal que tenta se beijar acaba provocando um acidente fatal. É o passado e o presente. A realidade que escapa sob um frio intenso, neblina e chuva. O carro mergulha no abismo, ambos morrem e o motorista, que teve a atenção desviada ao observar a cena do abraço, sobrevive. Fica o trauma. Aquela tentativa de beijo não lhe sai mais da cabeça.

O acontecimento tão insignificante não valeria nem mesmo uma investigação. Menos ainda um romance. Mas Kadaré, logo nas primeiras páginas do livro, instala a confusão na cabeça do seu próprio leitor ao deixar escapar uma informação importante: o homem que tentava beijar a moça, Bessfort Y, era diplomata, analista, colaborador do Conselho da Europa sobre questões dos Bálcãs ocidentais, e havia trabalhado contra a Iugoslávia. Ele fora julgado no Tribunal de Haia.

As 40 semanas anteriores ao acidentes são esmiuçadas na investigação. Engenhoso, Kadaré faz uma narrativa da narrativa. Este é o material que dá suporte ao romance. O que não significa monotonia na leitura. Aliás, muito pelo contrário. O texto é rico em detalhes, as confidências noturnas de dois amantes, testemunhas contraditórias, enfim, miudezas que longe de esclarecer, turvam e embaralham o curioso leitor até o fim do livro.

A jovem Rovena era realmente uma estudante apaixonada por Bessfort Y, ou seria uma garota de programa que estivera com ele algumas vezes? Por que eles tentavam se abraçar ali, naquele táxi, rumo ao aeroporto, numa estrada dos Bálcãs? A pianista, amiga de Rovena e sua amante seria uma testemunha-chave? O motorista realmente nada sabia? Ou era um cúmplice? O que haveria por trás daquele abraço e tentativa de um beijo? Se o amor é tirano ele também pode levar à morte?

Há ainda fábulas e referências às cantigas épicas balcânicas cujos conteúdos Kadaré transforma em metáforas na frenética tentativa de entender a realidade. Afinal, a busca de analogias com o passado da Albânia, as tragédias gregas e a pesquisa incessante acompanham o trabalho de Kadaré. Em Abril despedaçado, que inspirou o filme homônimo de Walter Salles, Kadaré traz de volta o Kanum, código que regulamenta os crimes de sangue na Albânia e mesmo que não tenha equivalente no Brasil, Salles adaptou-o a uma briga de famílias no sertão nordestino.

As perguntas, em circunlóquio, mantêm o leitor atento. Afinal de contas, mais do que uma reflexão sobre a tirania de um governo, a pressão e a opressão, estão em jogo também a tirania do amor, o ciúme, as relações paralelas e, finalmente, a cumplicidade de dois amantes. Rovena sabia das ações de Bessfort Y? Até que ponto, nas conversas da madrugada, ele não revelara as pressões políticas às quais estava submetido, os golpes e contra-golpes do governo albanês?

Kadaré vive hoje entre Paris e Tirana, na Albânia, e reconhece que a literatura foi sua principal aliada nos piores momentos da ditadura política de seu país. Isso antes de se tornar famoso, ter seus livros publicados em diversas línguas e, pelo mesmo motivo, conseguir deixar a Albânia. Ao lembrar que ser um escritor famoso dentro de um país stalinista significa ser duplamente culpado, Kadaré afirmou certa vez: “Meus amigos franceses daquela época, sempre através da imprensa, faziam perguntas sobre mim e o meu paradeiro na Embaixada da Albânia. Assim dirigiam recados ao governo e isso me ajudou bastante contra algum eventual acidente”. 


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