10/01/2010

O Sentido da Vida nas Pedras de Itaparica




Em O Albatroz Azul, seu romance mais recente, João Ubaldo recorre a uma narrativa despretenciosa para evocar suas memórias na Ilha de Itaparica
Elza Pires de Campos
Especial para o Correio-publicado em 31/12/2009
Façamos de conta que desconhecemos quem é João Ubaldo Ribeiro, vencedor do prêmio Camões de Literatura no ano passado, o mais alto galardão da literatura portuguesa, autor de romances históricos e sucessos de venda e de público como Viva o povo brasileiro, Sargento Getúlio e A casa dos budas ditosos. Pode-se imaginar também que, de João Ubaldo, saibamos apenas que nasceu em Itaparica, aquela ilha que os índios tupinambás assim chamaram por estar cercada de pedras (Ita-parica), situada muito próxima da Baía de Todos os Santos.
Só assim é possível perceber a forma que veste O Albatroz Azul, o livro de João Ubaldo lançado agora pela Nova Fronteira. Numa narrativa aparentemente simples e despretensiosa, o texto flui como água, o tempo transcorre na “lambida sonolenta da água nos costados dos barcos apoitados” e no ar com um cheiro de “uma mistura almiscarada de maresia, peixe fresco, comidas de tabuleiro e mingau, café torrado, melaço de cana e bosta de vaca”. É para sua ilha natal que João Ubaldo retorna e situa Tertuliano Jaburu, protagonista desta curta história.
Assim como não é por acaso que esta trama se passe em Itaparica, também não é nada aleatório o nome Tertuliano para o personagem principal. São Tertuliano foi um dos mais importantes escritores e filósofos cristãos da língua latina. É o autor da famosa frase “creio porque é absurdo”.
É justamente no estreito limite da crença com o absurdo que João Ubaldo constrói mais esta deliciosa história. Que vem entremeada por velhos ditados, saberes locais e filosóficos como “o explicar e o compreender, tão diferentes entre si que caminham separados”.
Mistérios
Na ilha de Itaparica, Tertuliano Jaburu é aquele velho sábio que está justamente de cara para o passado. Sua vida foi toda na ilha, seus amigos estão lá, sua família, seus muitos filhos com muitas mulheres, seus pais, avós e bisavós. Da quina da rampa do Largo da Quitanda e no caminho até a Bica,Tertuliano revê sua vida, carregado de mistérios, crenças, negros e brancos, Portugal e Brasil. Não por acaso, ainda, a história toda se passa no ano em que nasceu João Ubaldo, 1941. O narrador, por intermédio de Tertuliano, entre benzeduras e banhos de folha, costura e tece a trama principal deste livro lançado exatamente quando o autor completa cinco décadas de carreira literária.
No mercado da Ilha, no meio das fileiras de balaios cheios de peixe ou ao entardecer, quando os raios de sol refletem os “tons de açafrão” nas folhas das amendoeiras, Tertuliano nos apresenta seus amigos, o alfaiate Nestor Gato Preto, companheiro de décadas e possuidor de grande familiaridade com o oculto, o sagrado e o espiritual, adivinho, chegado desde tempos imemoriais às sociedades secretas. Além dele, tipos como Dona Roxa Flor, Iá Cencinha, Cipriano Mau Sorriso, Julia Mocinha, a negra mãe de santo que, católica fervorosa, jura não participar de cultos afro; Altina Pequena, a parteira que pilotara mais de três mil nascimentos na ilha; Natálio Querosene ou o barbeiro Nascimento, cujo falar repolhudo exige do autor o esmero linguístico dos seus grandes clássicos.
Afinal, em que lugar do mundo poderia existir uma barbearia com o nome de Tricotomia Parnaso? O verbete tricotomia indica um ramo que se divide em três partes e Parnaso nada mais é do que o monte grego onde sempre viveram os poetas. É na barbearia que Tertuliano se recolhe para providenciais desabafos com o barbeiro Nascimento e seu ajudante.
A trama se passa em dois dias. Somente dois dias na vida de Tertuliano, que, naquela noite de lua cheia se prepara para, talvez, o maior acontecimento da sua vida. Iria ter um neto homem. Ele, que já sabia e adivinhara o sexo do bebê desde que observou a barriga da sua filha Belinha; ela, casada com Saturnino que, como alguns homens, só conseguia fazer nascer mulheres e já fizera nascer em Belinha sete meninas encarreiradas. Mas agora sua filha daria à luz um homem. E não se tratava de um menino qualquer. Era um neto especial. A mesma certeza que embalava a vinda do neto leva Tertuliano a se preparar para a morte, num rito de passagem tão natural e inusitado quanto a existência de um Albatroz Azul.
Tertuliano passa seu dia na tarefa de escolher o nome do neto. Consulta o padre sobre o santo do dia. Nascido no dia de São Raymundo, Raymundo Penaforte, com ipsilone mesmo, o padroeiro da Ilha de Itaparica. O amigo Gato Preto sugere o padrinho. E para que o inusitado e o absurdo se completem, na hora do nascimento a velha parteira Altina Pequena observa, assustada, da janela aberta sob a luz da lua cheia, que o parto não seria nada fácil. A criança estava virada.
O neto de Tertuliano, menino de sorte, teria um padrinho rico e seria um advogado. Ele nasce, ou, como diz o barbeiro Nascimento, “vem à luz da vida com o uropígio voltado para selene” — o garoto para quem os profetas (ou vates) locais previram um futuro glorioso, nascera, literalmente, de cu para a lua.
É neste passeio sobre o sentido da vida, o inusitado do passado e das previsões do futuro, que o mais recente livro de João Ubaldo funciona como um olhar bem-humorado para as memórias do seu próprio passado, na bela ilha onde ele nasceu.
O Albatroz Azul De João Ubaldo Ribeiro Editora Nova Fronteira 224 páginas Preço: R$ 39,90

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