11/11/2009

Uma sugestão de livro

27/12/2008 - Fonte: Correio Braziliense
Pelo olhar de Ugwu

Elza Pires Especial para o Correio 
Quando a África decide contar a própria história, o mundo pode, enfim, vê-la com outros olhos. Curiosamente, é com a velha receita de uma história de amor, temperada pelo idealismo de um grupo de intelectuais africanos sonhadores, que a jovem escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie constrói seu premiado romance, Meio sol amarelo, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. O livro ganhou o prêmio Orange, na Inglaterra, no ano passado. Sua autora tinha 31 anos na época. O cenário é a Nigéria. A história, baseada em fatos reais, acontece no início e no fim da década de 1960. No mesmo período em que, no sudeste da Nigéria, grupos da etnia Ibo — que se opunha aos iorubas e outras etnias rivais — decide fundar o território livre de Biafra.

Chimamanda surpreende pela simplicidade. Seu olhar é para o ser humano, personagem central do romance. A partir desse viés, surge, naturalmente, o contexto político e econômico, dentro de uma África e de uma Nigéria que ainda hoje abrigam os mesmos conflitos, a mesma violência, a doença e a fome. Chimamanda conta uma história. Cabe ao leitor preencher o vazio que fica e buscar as informações. Afinal, o cenário dessa história — a guerra — foi bastante divulgado. Quem não se lembra das crianças esquálidas, pele e osso, barrigas enormes e olhos esbugalhados estampadas nos jornais do mundo? As crianças de Biafra.

O resgate histórico fica por conta do leitor. E talvez aí se encontre parte da surpresa desse romance, que se inicia de forma despretensiosa e cresce em dramaticidade à medida que se descortinam a guerra e os inevitáveis dramas humanos que a ela se seguem. Cabeças que voam, crianças doentes, livros queimados, seres destroçados, mulheres estupradas por soldados e levas de populações famintas. O drama humano de Biafra despertou o mundo, na década de 1960, para a ajuda humanitária dos médicos sem fronteiras e de outras organizações. Houve um momento em que até a Cruz Vermelha era bombardeada pelos soldados nigerianos. Mas Chimamanda não fala do contexto. Ela prefere contar história.

Lagos, no começo dos anos 1960. O futuro sorri para duas irmãs gêmeas. A bela Olanna se apaixona por Odenigbo, intelectual engajado e idealista. Sua irmã Kainene, meio sarcástica, alimenta uma relação com Richard, um jornalista inglês apaixonado pela cultura dos Ibos. Entre esses quatro personagens, o olhar intrigado do jovem Ugwu, de 13 anos, talvez o personagem mais singular e doce do romance. Ugwu quer aprender tudo. Devora livros na casa do patrão. Ele vem de um grupo dos Ibos, uma aldeia não muito distante da universidade, para trabalhar como empregado do professor.

O olhar de Ugwu passeia pelo romance como um mensageiro entre esses dois mundos. E, a cada final de capítulo, um pequeno resumo se revela no esboço de uma história escrita pelo garoto. O pano de fundo é a guerra que, no começo do livro, nem mesmo é cogitada, mas que avança dolorosa e impune até as últimas páginas. Ugwu nada sabe sobre a guerra. E sua inocência pontua cada pedaço do livro. Desde a surpresa ao conhecer um fogão e uma geladeira ao medo de não entender o inglês “bonito” falado pelo patrão e pela patroa. Ele tem ainda a compreensão de que a mãe do patrão lança sobre o casal estranhas energias vindas de sua aldeia, além de comidas que trazem má sorte.

Ugwu conduz o leitor a seu mundo e passeia com ele no mundo daqueles adultos que bebem, dão risada e pensam em criar um novo país. Diferente da Nigéria que, como Ugwu, foi, aos poucos, se aculturando. Como o foi a Nigéria tomada pelos ingleses que dominaram as centenas de etnias. Essa parte da Nigéria que se transforma em Biafra. Um pequeno país que durou três anos. Tempo suficiente para sonhar e até para ter o próprio hino, sua pequena história tão triste e tão recente, seus sonhos e sua bandeira: o desenho de um meio sol amarelo que deveria significar um novo dia.

No gigantesco quebra-cabeças dos continentes, o golfo de Biafra, cujo nome foi mudado na tentativa de apagar a história — hoje se chama Golfo de Bonny —, tem a mesma forma da costa nordestina brasileira. É como se um dia, num passado qualquer, a costa africana formada por Nigéria, Camarões e Gabão, tivesse sido colada ao Brasil. Hoje, entre eles, há mais que a imensidão do Atlântico. Há diferenças. A maior delas, o destino dos povos.

Elza Pires de Campos é jornalista, pós-graduada pelo Institut d’Étude du Developpement Économique et Social (Iedes –Paris I), Sorbonne

MEIO SOL AMARELO De Chimamanda Ngozi Adichie, tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 504 páginas. R$ 55.


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